"Eu sou o que me cerca. Se eu não preservar o que me cerca, eu não me preservo".
José Ortega y Gasset

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

O que há de latino-americano na produção da história ambiental?

Nesta postagem vamos analisar o texto de introdução do livro A Living Past Environmental Histories of Modern Latin America, cujo título original é Finding the “Latin American” in Latin American Environmental History de John Soluri, Claudia Leal, e José Augusto Pádua. 

Compreender a América Latina exige ir além dos clichês de paisagens exuberantes e repúblicas instáveis e uma das ferramentas mais poderosas para essa compreensão aprofundada é a história ambiental, um campo que examina a intrínseca e complexa relação entre as sociedades humanas e a natureza ao longo do tempo. Para entender a pertinência dessa abordagem, basta olhar para Villa Inflamable, um bairro pobre de Buenos Aires situado às margens do poluído rio Matanza-Riachuelo. 

https://elpais.com/internacional/2018/02/14/argentina/1518638112_243046.html

Ali, a degradação socioambiental não é um problema recente, mas a sobreposição de múltiplas camadas de história. Desde o século XIX, a área abrigava matadouros e curtumes que despejavam seus resíduos no rio. No século XX, tornou-se sede de um dos maiores polos petroquímicos da Argentina. Políticas neoliberais mais recentes agravaram a pobreza, expondo ainda mais os moradores a contaminantes como chumbo e cromo. A história de Villa Inflamable — que culminou em uma ação na Suprema Corte — encapsula a interação entre legados coloniais, projetos de nação, conexões globais e desigualdade social, mostrando por que uma perspectiva histórica é indispensável.

É nesse contexto que o capítulo "Introduction. Finding the ‘Latin American’ in Latin American Environmental History", parte da obra A Living Past: Environmental Histories of Modern Latin America, se apresenta como uma leitura fundamental. Os autores lançam uma questão central que serve como fio condutor para toda a análise: o que define e torna única a história ambiental da América Latina? Procuraremos com este texto explorar a estrutura argumentativa e as respostas propostas por este importante texto. Para baixar o texto que inspira esta publicação, acesse aqui.

A história ambiental latino-americana é um campo de estudo vibrante, mas relativamente jovem. Embora já bem estabelecida nos Estados Unidos e na Europa, foi apenas no início do século XXI que a área começou a florescer na América Latina, com um aumento significativo de publicações, conferências e programas de pós-graduação. Um marco institucional decisivo foi a criação da Sociedade Latino-Americana e Caribenha de História Ambiental (SOLCHA) em 2006, que ajudou a fortalecer redes de pesquisa e a promover o diálogo entre especialistas.

No entanto, o capítulo aponta desafios persistentes. A pesquisa ainda é marcada pela fragmentação, e a circulação de conhecimento enfrenta barreiras geográficas, linguísticas, tecnológicas e de culturas acadêmicas que resultam em uma historiografia desigual. Muitos estudos se concentram em nações ou regiões específicas, tornando difícil a construção de uma visão geral. É precisamente para superar essa fragmentação que o capítulo se propõe a oferecer uma estrutura analítica unificadora, capaz de conectar estudos de caso locais a processos históricos mais amplos.

O principal argumento do capítulo é a identificação de quatro características inter-relacionadas que são cruciais para "encontrar o 'latino-americano'" na história ambiental da região. Esses quatro eixos, que se sobrepõem e se influenciam mutuamente, oferecem uma lente poderosa para interpretar as transformações socioambientais da América Latina moderna:

1. As duradouras heranças do colonialismo ibérico.
2. A formação e persistência dos Estados-nação.
3. As trocas transoceânicas.
4. A tropicalidade.

O primeiro eixo desconstrói as heranças coloniais, argumentando que o colonialismo ibérico transformou permanentemente os ecossistemas e as sociedades da região. O colapso demográfico das populações indígenas, causado pela introdução de patógenos europeus, foi uma das mudanças mais drásticas. A exploração intensiva de recursos, como o desmatamento para alimentar as fundições de prata em Potosí e na Nova Espanha, deixou cicatrizes duradouras. O colonialismo também deu origem a grandes centros urbanos, como a Cidade do México, construídos sobre ecossistemas frágeis como leitos de lagos. A introdução de gado, cavalos e porcos ibéricos alterou paisagens e modos de vida, enquanto em outras áreas, o declínio populacional indígena levou ao abandono de campos agrícolas, permitindo a expansão de florestas. Os autores ressaltam uma nuance crucial: diferentemente de projetos coloniais europeus posteriores na África e na Ásia, que tinham políticas explícitas de gestão de recursos, o colapso demográfico nas Américas foi uma consequência não intencional, destacando a contingência única do passado colonial da região.

Após as independências no século XIX, os novos Estados-nação se apropriaram da natureza, tratando-a como um "patrimônio nacional". Este segundo eixo analisa o papel central e dual do Estado na reconfiguração do meio ambiente. Os governos se esforçaram para mapear e delimitar seus territórios, nacionalizando a natureza através da demarcação de fronteiras. Formaram-se o que os autores argumentam serem, literalmente, "repúblicas da natureza" — nações cujo poder estatal e finanças foram construídos sobre a extração e exportação de commodities como o guano peruano (excremento de aves), bananas e café. No século XX, projetos de modernização impulsionados pelo Estado — grandes barragens, rodovias, industrialização — aceleraram essa transformação extrativa. Este eixo expõe uma tensão fundamental: o mesmo Estado que promovia a exploração agressiva para a construção nacional era também o agente que criava parques nacionais e departamentos florestais, assumindo um papel na conservação para definir e proteger o patrimônio da nação.

A história ambiental da América Latina é inseparável de fluxos globais que se estendem muito além do "Intercâmbio Colombiano" inicial. O terceiro eixo aprofunda essa análise, desafiando uma visão eurocêntrica e do início da era moderna ao destacar conexões transoceânicas posteriores e multidirecionais. Houve fluxos massivos de pessoas, incluindo africanos escravizados, trabalhadores contratados da China e da Índia, e imigrantes da Europa. Esses grupos trouxeram consigo suas próprias plantas, animais e práticas culturais. Os fluxos de biota também foram determinantes; a introdução de gramíneas africanas e gado do sul da Ásia, por exemplo, revolucionou a pecuária tropical. Além disso, os fluxos de doenças de commodities, que ameaçavam culturas de exportação, levaram cientistas e governos a criar centros de pesquisa dedicados à patologia vegetal e ao melhoramento genético, conectando a ciência local às redes globais de conhecimento.

O quarto eixo, a "tropicalidade", é um conceito complexo que não se refere apenas a uma característica climática, mas a uma poderosa ideologia cultural construída historicamente. Os autores mostram como essa ideia sempre foi ambivalente: os trópicos eram vistos tanto como um lugar de exuberância e riqueza natural quanto de perigo, doença e degeneração racial. Essa ideologia dualista serviu para justificar intervenções externas, como as campanhas de saneamento que viabilizaram a construção do Canal do Panamá. A percepção sobre as florestas tropicais também mudou drasticamente. Até meados do século XX, elas eram vistas como "selvas" (jungles) ameaçadoras, um obstáculo à civilização. A partir da década de 1970, essa imagem foi substituída pela de "florestas tropicais" (rainforests), ecossistemas frágeis e megadiversos, agora ameaçados pela civilização.

Ao analisar o estado da arte da pesquisa, os autores observam que a "primeira onda" de estudos em história ambiental latino-americana teve uma forte preocupação com o destino das florestas e o desmatamento. Embora fundamental, esse foco deixou outros temas cruciais sub-representados na historiografia. Áreas como a mineração e o petróleo, as pastagens (pampas, cerrados, llanos), os desertos e, de forma mais ampla, o consumo interno de alimentos e energia, ainda carecem de mais atenção. A aplicação dos quatro eixos a essas lacunas pode gerar novas e importantes percepções. Um estudo sobre o Deserto do Atacama, por exemplo, poderia iluminar o papel do Estado-nação (Eixo 2) na gestão de recursos hídricos escassos e as complexas ideias culturais sobre terras áridas que desafiam a narrativa dominante da "tropicalidade" (Eixo 4).

A força da contribuição do capítulo introdutório de A Living Past reside em sua capacidade de oferecer um "mapa conceitual" e uma proposta metodológica para um campo acadêmico em expansão, mas ainda fragmentado. Ao articular os quatro eixos — heranças coloniais, Estado-nação, conexões transoceânicas e tropicalidade —, os autores fornecem uma estrutura robusta para pensar a história ambiental da região de forma integrada e comparativa.

A importância deste texto pode ser destacada para diferentes públicos:

• Para estudantes: Funciona como uma excelente porta de entrada, apresentando de forma clara e sistemática os principais conceitos, debates e temas da área.
• Para professores: Oferece uma estrutura didática e organizada para lecionar sobre a história ambiental da América Latina, permitindo conectar diferentes períodos e regiões.
• Para pesquisadores: Serve como uma provocação para novas investigações, incentivando a conexão entre estudos de caso locais e os grandes processos históricos que definem a região, além de apontar lacunas importantes na pesquisa.

Em suma, o capítulo demonstra de forma contundente como a história ambiental é uma ferramenta indispensável para uma compreensão profunda dos desafios contemporâneos e das formações sociais, políticas e econômicas da América Latina moderna.

Sobre os autores do texto:


John Soluri é professor de História e Diretor de Global Studies no Departamento de História da Carnegie Mellon University (EUA), onde leciona sobre mudanças sociais e ambientais na América Latina. Sua pesquisa e ensino exploram, especialmente, as histórias transnacionais da agricultura, alimentação, energia e da mercantilização de não-humanos na região. É autor de Banana Cultures: Agriculture, Consumption and Environmental Change in Honduras and the United States, obra premiada com o George Perkins Marsh Award. Seus projetos recentes envolvem história ambiental da alimentação, produção de café e extração de petróleo na América Latina.


Claudia Leal é professora titular no Departamento de História e Geografia da Universidad de los Andes (Bogotá, Colômbia). É doutora em Geografia pela University of California, Berkeley, com formação em economia. Sua pesquisa se situa na interseção entre história e geografia, com foco na história ambiental latino-americana, conservação da natureza e transformação do território após a escravidão. Publicou livros como Paisajes de libertad e coeditou coletâneas importantes, incluindo Un pasado vivo: Dos siglos de historia ambiental latinoamericana, versão em espanhol de A Living Past. Leal também participou como fundadora e co-presidente da Sociedade Latino-Americana e Caribeña de Historia Ambiental e foi pesquisadora em instituições internacionais.


José Augusto Pádua é professor associado de História do Brasil no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e pós-doutorado pela University of Oxford. É um dos principais especialistas brasileiros em história ambiental, tendo contribuído com estudos sobre políticas ambientais, biomas brasileiros e história territorial. Foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade (ANPPAS) e atua no Laboratório de História e Natureza da UFRJ. Sua obra inclui Um sopro de destruição, que examina as bases ambientais e políticas do Brasil escravista, e a coorganização de A Living Past: Environmental Histories of Modern Latin America. Pádua também participa de conselhos editoriais e colabora internacionalmente em conferências e projetos de pesquisa

Referência: SOLURI, John; LEAL, Claudia; PÁDUA, José Augusto. Introduction. Finding the “Latin American” in Latin American Environmental History. In: LEAL, Claudia; SOLURI, John; PÁDUA, José Augusto (org.). A Living Past: Environmental Histories of Modern Latin America. New York: Berghahn Books, 2018.

OBS: Este texto passou por revisão e alterações a partir de uso de ferramenta de IA generativa.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Cinco lições surpreendentes que a História Ambiental revela sobre o Mundo

David Arnold
Quando pensamos em história, geralmente imaginamos um palco onde os grandes dramas da humanidade se desenrolam: batalhas, revoluções, a ascensão e queda de impérios. Nesse cenário, a natureza — o clima, as florestas, os rios e as doenças — costuma ser tratada como um pano de fundo estático, um elemento passivo que apenas testemunha a ação humana. Mas e se a natureza não for apenas o cenário, e sim um dos protagonistas mais poderosos e secretos da história? É essa a ideia central explorada pelo historiador David Arnold na obra A natureza como problema histórico: o meio ambiente, a cultura e a expansão europeia

Baixe aqui o livro

David Arnold argumenta que a "natureza" não é apenas uma realidade física, mas um "problema histórico". Ao longo dos séculos, o conceito de natureza foi moldado, debatido e, crucialmente, utilizado como uma ferramenta para justificar grandes eventos históricos. Ideias sobre o clima, a geografia e a biologia foram usadas para legitimar desde a superioridade de civilizações até a subjugação de povos inteiros. Este artigo demonstrará que, repetidamente, a "natureza" foi invocada não como uma verdade objetiva, mas como a justificação final para o exercício do poder.

Vamos aqui  mergulhar nessa fascinante abordagem para revelar cinco das lições mais impactantes e surpreendentes que a história ambiental nos ensina. Prepare-se para descobrir como o destino de impérios foi selado não apenas por exércitos, mas por micróbios, e como ideias aparentemente científicas sobre o meio ambiente serviram para construir o mundo como o conhecemos.

A primeira lição, o clima como arma política e a antiga ideia de que a geografia define o destino
 
A ideia de que a geografia molda o destino é uma das mais antigas e persistentes da história humana. Mas a história ambiental revela que essa não era uma observação neutra; era uma arma política. Por milênios, prevaleceu o que os historiadores chamam de "paradigma ambientalista": a crença de que o ambiente, especialmente o clima e a topografia, dita de forma inescapável as características físicas, morais e políticas de uma sociedade.

O tratado grego Ares, águas, lugares, atribuído a Hipócrates no século V a.C., articulou pela primeira vez de forma sistemática essa ideia. O texto argumentava que climas estáveis e terras férteis produziam povos "dóceis e pouco passionais", enquanto climas variáveis e terrenos acidentados geravam povos valentes e inteligentes. Essa lógica foi usada para criar um contraste fundamental entre uma Europa "superior", moldada por desafios ambientais, e uma Ásia "fraca" e submissa, amolecida por um clima ameno e condições fáceis.

Essa forma de pensar ganhou força renovada no século XVIII com o filósofo Montesquieu. Em sua influente obra O Espírito das Leis (1748), ele usou argumentos climáticos para justificar sistemas políticos. Para ele, o despotismo não era uma falha moral ou política na Ásia, mas uma consequência natural de sua geografia e clima extremos, que exigiam um poder absoluto para manter a ordem. Em contraste, o clima moderado e o terreno fragmentado da Europa eram, segundo ele, o berço natural da liberdade.

O poder, por conseguinte, deve ser sempre despótico na Ásia, pois se a servidão não fosse extrema, o continente sofreria uma divisão que a geografia da região proíbe. Essa ideia, que se apresentava como uma observação científica, serviu como uma poderosa ferramenta ideológica. Ela permitiu criar uma "outridade", uma diferença fundamental e "natural" entre o Ocidente e o resto do mundo, e justificar hierarquias de poder muito antes do auge do imperialismo moderno. Esta arma ideológica, que transformava o clima em destino, seria em breve acompanhada por uma arma biológica ainda mais devastadora.

A segunda lição, a conquista biológica: como germes, ervas daninhas venceram impérios

A história que nos contaram sobre a conquista da América está errada. Não foram o aço e a pólvora os verdadeiros conquistadores, mas sim aliados invisíveis e silenciosos que os europeus trouxeram sem saber. A história ambiental revela que os passageiros clandestinos que vieram nos navios, como germes, plantas e animais, foram mais letais e decisivos que qualquer exército.

O historiador Alfred W. Crosby chamou esse processo de "Imperialismo Ecológico". Após séculos de isolamento, o encontro entre o Velho Mundo (Europa, Ásia, África) e o Novo Mundo (as Américas) desencadeou o "Intercâmbio Colombiano" — uma transferência massiva de espécies. O problema é que essa troca foi devastadoramente desigual. Enquanto as Américas deram ao mundo batata e milho, a Europa exportou uma "biota" invasora — uma verdadeira "valija" ecológica, nas palavras de Crosby, e que aniquilou as populações nativas.

Germes como a varíola e o sarampo, contra os quais os povos ameríndios não tinham qualquer imunidade, espalharam-se como fogo, causando pandemias que mataram milhões. Animais como porcos e gado, soltos no novo ambiente, multiplicaram-se descontroladamente, destruindo plantações nativas. O resultado foi um colapso demográfico tão catastrófico que o historiador David E. Stannard o chamou de "o pior holocausto humano da história". Embora a vantagem biológica tenha sido inegavelmente decisiva, ela atuou em conjunto com sistemas brutais de exploração, criando uma "tempestade perfeita" de destruição, em vez de um simples acidente biológico.

O primeiro passo para entender o homem consiste em considerá-lo uma entidade biológica que tem existido sobre este planeta, afetando os organismos que compartilham com ele o ambiente e, ao mesmo tempo, sendo afetado por estes, durante milhares de anos. Essa perspectiva biocêntrica muda tudo. Ela nos mostra que a aparente "facilidade" da conquista não se deveu apenas à superioridade militar europeia, mas a uma vantagem biológica avassaladora. Os "aliados biológicos" dos europeus foram, em muitos casos, mais decisivos do que suas estratégias e armas, revelando como a história pode ser profundamente moldada por forças invisíveis da natureza.

A terceira lição trata do legado sombrio da Peste Negra e sua conexão com o tráfico de escravos

A Peste Negra, que varreu a Eurásia entre 1346 e 1351, é lembrada como a "maior crise ambiental" da história europeia. A epidemia matou cerca de um terço da população do continente, levando ao colapso do sistema feudal e a profundas transformações sociais. Contudo, uma de suas consequências mais impactantes e menos conhecidas se estende para muito além da Europa, conectando a catástrofe a uma das maiores tragédias da história moderna: o tráfico transatlântico de escravos.

Antes da Peste Negra, a Europa complementava sua força de trabalho com escravos, muitos dos quais vinham da região do Mar Negro. A pandemia, no entanto, desencadeou uma cadeia de eventos com um efeito borboleta assustador. Primeiro, a doença dizimou a população europeia, criando uma demanda nova e desesperada por mão de obra. Segundo, a mesma praga interrompeu a rota tradicional de escravos do Mar Negro, um bloqueio que foi consolidado mais tarde pelo avanço do Império Otomano.

Com a antiga fonte de escravos bloqueada e a necessidade de trabalhadores em alta, comerciantes portugueses e italianos voltaram sua atenção para uma nova fonte: a costa da África Ocidental. A Peste Negra, ao criar um déficit de mão de obra sem precedentes e fechar as rotas antigas, deu assim um impulso crucial para o início do tráfico de escravos africanos, ligando duas catástrofes históricas de forma chocante. Um "acidente" biológico ocorrido na Eurásia — a propagação de um bacilo por meio de ratos e pulgas — reconfigurou indiretamente o mapa demográfico e moral da África e das Américas séculos depois.

A quarta lição trata do mito da natureza intocada

A narrativa da expansão dos Estados Unidos é dominada pela "tese da fronteira", popularizada pelo historiador Frederick Jackson Turner. Essa visão argumentava que a experiência de conquistar uma "terra livre", um continente "selvagem" e "intocado", foi o que forjou a democracia e o individualismo americanos, distinguindo a nação de suas origens europeias. A história ambiental, no entanto, desmonta completamente esse mito fundador.

Longe de ser uma terra virgem, a América pré-colombiana era um continente intensamente manejado por seus povos nativos por milênios. Os indígenas eram agentes ecológicos ativos que moldavam a paisagem de forma profunda e sofisticada. Eles usavam o fogo de maneira controlada para limpar áreas de floresta, o que promovia o crescimento de plantas úteis e atraía caça. Praticavam formas complexas de agricultura que alteravam a composição do solo e da vegetação em vastas regiões.

O que os colonizadores europeus perceberam como uma natureza "selvagem" era, na verdade, um artefato do colapso demográfico que eles mesmos haviam causado. A paisagem parecia intocada porque os sistemas indígenas de manejo haviam entrado em colapso com a dizimação de suas populações. O historiador Francis Jennings, citado por William Cronon, capturou essa realidade com uma frase poderosa: a terra encontrada pelos europeus era menos "virgem" do que "viúva".
Essa revelação nos força a repensar a narrativa de "civilização versus selvageria". O mito da natureza intocada não foi apenas um erro, mas uma ilusão autojustificativa criada pelo próprio processo de colonização. A expansão europeia não foi a criação de uma nova ordem a partir do nada, mas a destruição e a substituição de uma complexa ordem ecológica e cultural que já existia.

A  quinta lição é sobre os Trópicos: entre o paraíso e o inferno

A mesma lógica que permitiu aos gregos e a Montesquieu usar o clima para definir a Europa em oposição à Ásia foi reimaginada pelos exploradores europeus para inventar uma nova geografia de poder: a "tropicalidade". O conceito de "trópicos" não é um simples fato geográfico, mas uma poderosa construção cultural europeia, marcada por uma profunda ambivalência.

Por um lado, desde as primeiras viagens de exploração, os trópicos foram imaginados como o paraíso na Terra. Cristóvão Colombo descreveu o Caribe como um possível Jardim do Éden, e as expedições do Capitão Cook ao Taiti no século XVIII reforçaram a imagem de um lugar de abundância, inocência e liberdade. Essa visão edênica atraiu naturalistas e artistas, que viam nos trópicos um refúgio da fria e reprimida Europa.

Por outro lado, desenvolveu-se uma visão radicalmente oposta: os trópicos como a "zona tórrida", um inferno na Terra. A medicina colonial retratava a região como um foco de doenças mortais e degeneração. Acreditava-se que o calor e a umidade não apenas enfraqueciam o corpo europeu, mas também corrompiam a moral, levando à indolência e à depravação. Essa imagem negativa servia a um propósito político claro: justificava a crença de que a "civilização" era impossível nos trópicos sem a intervenção europeia e que a escravidão era um sistema "natural" e necessário para a produtividade da região.

Essa "invenção" dos trópicos foi uma forma de definir, categorizar e, finalmente, controlar vastas regiões do mundo. Ela demonstra como a percepção que temos do meio ambiente nunca é neutra; é sempre uma lente através da qual projetamos nossos medos, desejos e, acima de tudo, nossas relações de poder.

Podemos concluir que estas 5 lições de história ambiental revelam uma verdade desconcertante: nossa relação com a natureza é muito mais complexa e politicamente carregada do que imaginamos. Vimos como o clima foi usado para justificar impérios, como micróbios invisíveis foram mais decisivos que exércitos, como uma pandemia em um continente selou o destino de outro, e como nossa própria percepção do que é "natural" ou "selvagem" foi construída para servir a interesses de poder. A natureza nunca foi apenas um pano de fundo; ela sempre esteve no centro da história, como causa, consequência e justificação.

A lição mais profunda da história ambiental é esta: a forma como nomeamos e definimos o mundo natural é um ato de imenso poder e responsabilidade. Entender como essa ferramenta foi usada no passado é o único caminho para garantir que, no futuro, ela seja usada para a justiça, e não para a exclusão.

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sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Suzana Beatriz Peters, conquista o 1º lugar no mestrado em Desenvolvimento Regional

O Grupo de Pesquisa tem a alegria de celebrar uma conquista significativa de uma de suas ex-bolsistas: Suzana Beatriz Peters, egressa do curso de História da FURB, foi classificada em primeiro lugar no processo seletivo para o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional - FURB. A futura mestranda desenvolverá sua pesquisa sob orientação do professor Gilberto, fortalecendo ainda mais a produção científica vinculada ao nosso grupo. Suzana teve uma trajetória marcante durante sua graduação. Participou ativamente de iniciações científicas, contribuiu para projetos relevantes e defendeu seu Trabalho de Conclusão de Curso dentro da nossa linha de pesquisa. Sua dedicação, curiosidade acadêmica e compromisso com o estudo do desenvolvimento regional foram diferenciais decisivos para essa nova etapa.

Agora, ingressando na pós-graduação, Suzana dá continuidade ao seu percurso acadêmico dentro do grupo, reafirmando a importância da formação científica desde a graduação e a força da pesquisa como instrumento de transformação social.

Parabenizamos Suzana pela conquista e desejamos muito sucesso em sua caminhada no mestrado. Que esta nova fase seja repleta de aprendizados, descobertas e realizações!

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Participação do GPHAVI na 19ª Mostra Integrada de Ensino, Pesquisa, Extensão e Cultura (MIPE), realizada na FURB em 2025.

O Grupo de Pesquisas de História Ambiental do Vale do Itajaí marcou presença na 19ª Mostra Integrada de Ensino, Pesquisa, Extensão e Cultura (MIPE), realizada na FURB. O evento destacou a diversidade de temas do grupo, que apresentou resultados de duas Iniciações Científicas (IC) e de estudos avançados sobre a biodiversidade regional.

O estudante de Arquitetura e Urbanismo da FURB, Felipe de França Rodrigues, sob orientação do Dr. Gilberto Friedenreich dos Santos, apresentou o trabalho "História ambiental da agropecuária no Vale do Itajaí (SC) nos séculos XVIII e XIX".

Da esquerda para direita: Gilberto, Felipe, Martin

A pesquisa é fundamental para entender o desenvolvimento regional: O estudo aborda o período que se inicia em 1750, com o povoamento na Foz do Itajaí, e ganha força com a Colônia Blumenau (1850).  A introdução de espécies exóticas pelos colonos, visando o desenvolvimento agropecuário, causou a substituição de extensas áreas de Mata Atlântica. O trabalho buscou mensurar os impactos no ecossistema e as mudanças consequentes na paisagem, biodiversidade, uso do solo e qualidade da água. O estudo é de caráter histórico-descritivo e qualitativo, utilizando fontes como jornais, cartas de imigrantes e relatórios coloniais.

O grupo também investiu na formação da base, com a Iniciação Científica PIBIC/CNPq voltada ao Ensino Médio.

Da esquerda para direita: Martin, Gabriell, Gilberto e Letycia

Os estudantes Letycia Caroline de Souza e Andersson Gonçalves, orientados pelo Dr. Martin Stabel Garrote, apresentaram o tema "A divulgação científica de História Ambiental nas redes sociais: investigando a produção dos grupos de pesquisa do Sul e Sudeste".  A História Ambiental, por examinar a interação humana com o meio ambiente ao longo do tempo, tem um papel chave na agenda ecológica atual. A pesquisa é exploratória e buscou obter conhecimento prévio sobre como grupos de pesquisa de IES das regiões Sul e Sudeste utilizam as redes sociais para divulgar conteúdo. Com ela foi possível compreender a natureza, o formato e o alcance dessa divulgação, fornecendo subsídios para futuras pesquisas aprofundadas sobre o engajamento público.

Da esquerda para direita: Carlos e Heloisa

Os pesquisadores Carlos E. Zimmermann e Vanessa Dambrowski, membros do grupo, também levaram para a MIPE resultados de estudos que expandem as fronteiras da História Ambiental para a Ecologia e Zoologia local. O pesquisador Carlos E. Zimmermann esteve envolvido em três importantes levantamentos sobre avifauna em Santa Catarina, demonstrando a interdisciplinaridade nas pesquisas.


domingo, 31 de agosto de 2025

Já é um seguidor do nosso Blog?

Desde 2009, o Blog do Grupo de Pesquisas de História Ambiental do Vale do Itajaí tem sido um espaço dedicado à divulgação das atividades do grupo, e o que começou como uma simples página inicial para o grupo transformou-se em uma ferramenta dinâmica e essencial para compartilhar conhecimento, reflexões e atividades relacionadas à História Ambiental. Vale ressaltar que o blog é um Programa de Extensão do GPHAVI, e seus resultados mostram a difusão dessa área, acentuando o blog como um canal importante de divulgação científica.

A ideia do blog surgiu como uma opção prática para centralizar as informações do grupo, mas rapidamente evoluiu para um canal ativo de comunicação de História Ambiental. Além de divulgar eventos, publicações e projetos do grupo, passou a cumprir um papel fundamental na divulgação científica, traduzindo conceitos acadêmicos em linguagem acessível e mostrando como o passado ambiental nos ajuda a compreender os desafios do presente.

Hoje, celebramos com orgulho 725 postagens publicadas e mais de 301 mil visualizações ao longo de sua trajetória! Esses números não são apenas métricas, representam o interesse crescente pela História Ambiental e a relevância do trabalho desenvolvido por pesquisadores, estudantes e colaboradores envolvidos. 

Dados em 21/08/2025









O blog atingiu públicos em diferentes regiões do Brasil e até mesmo em outros países, tornando-se referência para quem estuda ou se interessa pela relação entre sociedade e natureza ao longo do tempo. Abaixo, confira um mapa com os principais acessos:




Agradecemos a todos que acompanham, compartilham e interagem com nosso conteúdo. Essa trajetória é resultado de muito trabalho coletivo e da crença de que a História Ambiental é essencial para pensarmos um futuro mais sustentável e consciente. Quer saber mais? Navegue pelas postagens, comente e faça parte dessa conversa! Clique e se torne um seguidor para acompanhar as postagens.


sábado, 30 de agosto de 2025

Ensino de História Ambiental na Educação Básica: possibilidades.

Imagem de IA
O ser humano sempre esteve entrelaçado ao meio ambiente, moldando-o e sendo moldado por ele ao longo do tempo. No entanto, por muito tempo, essa relação foi pouco explorada nas aulas de História. Hoje, diante dos desafios ambientais, o que vivemos no antropoceno, o ensino de História Ambiental emerge como uma ferramenta poderosa para formar cidadãos críticos e conscientes. Ao pensar no assunto, levantei três fontes para analisar e falarei delas, e pontuo algumas observações sobre como integrar a História Ambiental na Educação Básica, na sala de aula!


O primeiro texto que analisamos foi Fabrício Viana Almeida, intitulado Aprendizagem histórica ambiental: a relação entre História local e o território ambiental do Rio Lontra como estratégia de ensino de História no Colégio Estadual Rui Barbosa - Araguaína-TO,  trata de um exemplo concreto, sendo até guia, Almeida demonstra como a história local de uma cidade e seu território ambiental (no caso, o rio Lontra em Araguaína-TO) podem ser usados como ponto de partida para discutir a poluição e as transformações ambientais ao longo do tempo. A pesquisa usou uma abordagem qualitativa-quantitativa e o método de pesquisa-ação, envolveu estudantes na investigação, produção de material pedagógico e disseminação de conhecimentos para sensibilizar a comunidade para a causa ambiental. O trabalho resultou na criação de um Guia de Orientação em formato e-book (PDF) para auxiliar na sala de aula, apresentando uma estratégia de ensino de oito etapas. Uma atividade muito legal, integrando a História Ambiental, História Local,  onde o aluno vive, com questões ambientais mais amplas.

O segundo texto foi o trabalho de Stephany Beatriz de Souza Silvestre, História e meio ambiente: ensino de história ambiental na educação básica e suas possibilidades, que realiza uma análise sobre o surgimento da História Ambiental como campo de estudo, suas problemáticas e as possibilidades de sua inclusão na educação básica. Silvestre destaca a importância de superar o antropocentrismo (visão de que o ser humano é o centro de tudo e o principal causador de problemas ambientais), reconhecendo que a natureza também é um agente ativo na história. O artigo reforça a necessidade da interdisciplinaridade, incentivando o diálogo entre História e outras áreas como Biologia, Química e Geografia para uma compreensão mais completa. Além disso, aponta os marcos legais e educacionais que apoiam a inclusão da História Ambiental, como a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (1981), a Lei da Educação Ambiental (1999) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que preveem a análise de processos ambientais em diferentes escalas. 

A terceira fonte é de Evandro Cardoso do Nascimento, O ensino de história ambiental na educação básica: uma Aula-Oficina sobre a pré-história, apresenta uma metodologia para o ensino de História Ambiental através de "Aula-Oficina", aplicada a estudantes do 6º ano do Ensino Fundamental. Ele explica uma metodologia ativa e participativa, a Aula-Oficina, que transforma a sala de aula em um espaço de produção de conhecimento. O estudo mostra como utilizar fontes históricas não-tradicionais, como as pinturas rupestres do Parque Nacional Serra da Capivara, para reconstruir ambientes naturais do passado (paleoambiente) e discutir sobre as mudanças climáticas. A abordagem visa ao desenvolvimento da consciência histórica genética dos estudantes, fazendo-os perceber que o meio ambiente não é estático e que as experiências humanas ocorrem em constante interação com o mundo natural, conectando passado, presente e futuro. A Aula-Oficina valoriza o conhecimento prévio dos alunos, a interpretação de fontes e a produção de narrativas históricas, tornando o aluno protagonista de sua aprendizagem.

É um tema muito interessante, o ensino de Historia Ambiental, e essa dimensão é fundamental em muitas outras análises. Como exemplo a política do café com Leite, os ciclos econômicos, isso tudo leva um pouco de natureza como elemento norteador e agente de transformação da história. Integrar a História Ambiental no ensino é não só possível, mas necessário! A história do Brasil pode ser compreendida de forma mais completa e significativa através da lente da História Ambiental, pois nossa história é movida em muitos momentos por elementos naturais, como o pau-brasil, a cana-de-açúcar, o ouro, o café e, mais recentemente, a agropecuária e a mineração, não apenas moldou a economia, mas também definiu as estruturas sociais, os conflitos territoriais e a própria identidade nacional. Essa abordagem evidencia que a natureza não foi meramente um palco ou recurso passivo, mas um agente ativo que influenciou decisões políticas, rotas de expansão e até mesmo a resistência de povos indígenas e comunidades tradicionais, desvendando as raízes profundas dos desafios socioambientais contemporâneos.

Para fazer um aula de História Ambiental comece pelo local e o cotidiano dos estudantes, identifique problemas locais, explorando questões ambientais presentes na comunidade, como a poluição de um rio próximo, o desmatamento de uma área verde ou problemas com o lixo. Pode ser explorada a memória dos mais velhos, e a participação dos estudantes torna o aprendizado mais significativo, pois os alunos se conectam com a realidade em que vivem. Conecte a história da escola e da cidade, e para isso realize uma pesquisa com os estudantes identificando a história do bairro, da escola ou do município. Muitas cidades surgiram e se desenvolveram em torno de rios ou florestas, e suas histórias estão entrelaçadas com as transformações ambientais. Monte uma cronologia e verifiquem como o ambiente se transformou. Debata os resultados em sala, monte um exposição!

É possível desenvolver diversas atividades de ensino de História Ambiental estando integrada a outros componentes circulares, assim dialogue com outras disciplinas para integrar o seu projeto, isso é importante para a História Ambiental, e procure parcerias com professores de Biologia, Geografia, Química e até de Artes. Discutir temas ambientais sob diferentes perspectivas enriquece o aprendizado e oferece uma compreensão mais completa. Use documentos curriculares como a BNCC e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU já oferecem diretrizes para a abordagem de temas ambientais e a integração entre diferentes áreas do conhecimento. 

Com os estudantes utilize Metodologias Ativas e diversos tipos de fontes. Metodologias como Pesquisa-Ação e Aula Oficina, como olhamos no estudo acima,  possibilitam engajar os alunos em projetos de pesquisa, onde eles são os protagonistas, incentivando os estudantes a investigar, coletar dados, produzir materiais e disseminar o conhecimento. E é claro, diversifique nas fontes, vá além dos livros didáticos e utilize fotos antigas, mapas, relatos de viajantes, jornais, documentos governamentais, mitos, lendas e até pinturas rupestres. Essas fontes podem revelar como as sociedades do passado interagiam com a natureza e como os ambientes mudaram. Vídeos e simuladores virtuais de ecossistemas também são recursos didáticos valiosos. Se possível, leve os alunos para fora da sala de aula. Visitas a áreas protegidas, rios ou locais históricos na comunidade podem enriquecer a experiência e a percepção ambiental.

Ajude os estudantes a entender que as transformações ambientais não são um fenômeno recente, mas parte de um processo histórico contínuo. Como vimos em um dos estudos acima, a poluição do rio Lontra, por exemplo, tem raízes em eventos como a construção de rodovias e usinas hidrelétricas décadas atrás. Desafie a ideia de que a natureza é apenas um pano de fundo para a ação humana. Mostre como fenômenos naturais (clima, relevo, hidrografia) influenciam e são influenciados pelas sociedades. 
Ao compreender as causas históricas dos problemas ambientais, os alunos podem desenvolver um senso de responsabilidade e propor soluções para o presente e o futuro, tornando-se cidadãos mais atuantes. Assim ensinar História Ambiental é uma oportunidade de construir um conhecimento mais completo e significativo, capacitando os estudantes a serem agentes de mudança em um mundo que exige cada vez mais sensibilidade e compromisso com a preservação do meio ambiente.

Fontes:




domingo, 24 de agosto de 2025

História Ambiental e as guerras: uma dimensão necessária


Imagem gerada com IA

Quando nossos estudantes de História pensam a Segunda Guerra Mundial (1939–1945), os temas que aparecem são batalhas, armas, tecnologias, as destruições causadas, o nazifascismo, o Holocausto e as bombas atômicas etc... No entanto, muitas vezes se esquecem dos problemas ambientais decorrentes desses fatores, tanto na produção material que gera a guerra, quanto nos resultados da guerra na transformação das paisagens, nas contaminações geradas pela indústria bélica e nos impactos provocados pelo conflito em si ao longo da história. Vale ressaltar, portanto, que, uma vez que hoje muitos historiadores apontam para a Era do Antropoceno, é necessário, como professores de História ou acadêmicos da área, considerar também a dimensão ambiental.

Quando olhamos a produção de História sobre a guerras os estudos geralmente privilegiaram aspectos políticos, sociais e militares: grandes generais, batalhas, estratégias e impactos institucionais. Mesmo no grupos de estudos que passam a ser chamados de nova história militar, estudos trataram de temas como gênero, raça e cultura no contexto bélico, e deixou de lado os efeitos ambientais dos conflitos. Foi apenas a partir das décadas de 1980 e 1990, e especialmente após os anos 2000, que os pesquisadores começaram a olhar com mais cuidado para a relação entre guerra e natureza.

Dois livros fundamentais ajudam a compreender como os conflitos armados moldaram não apenas a política e a economia, mas também a relação entre sociedade e natureza. O primeiro é War and Nature: Fighting Humans and Insects with Chemicals from World War I to Silent Spring (2001), de Edmund Russell. Nele, o autor mostra como a fronteira entre o campo de batalha e o campo agrícola foi sendo borrada ao longo do século XX. Os mesmos químicos criados para matar soldados inimigos, como os gases de guerra utilizados na Primeira Guerra Mundial, serviram de base para os pesticidas que passariam a dominar a agricultura moderna. A lógica da guerra, com suas metáforas de inimigos, extermínio e segurança, foi transplantada para o campo, transformando insetos e pragas em “adversários a serem vencidos” e consolidando a quimificação da agricultura no pós-guerra.

O segundo é a coletânea Natural Enemy, Natural Ally: Toward an Environmental History of War (2004), organizada por Richard Tucker e Edmund Russell. A obra reúne pesquisas de diferentes autores sobre como guerras globais afetaram ecossistemas e recursos naturais. O livro mostra, por exemplo, o impacto do esforço bélico sobre florestas, minérios e plantações, bem como a mobilização de recursos estratégicos, como a borracha, a madeira e os alimentos, para sustentar as frentes de combate. A guerra, nesse sentido, não é apenas um evento humano, mas também um fenômeno ecológico que remodela territórios inteiros.

Um outro livro que apresenta um excelente estado da arte é War and the Environment: Military Destruction in the Modern Age, organizado por Charles E. Closmann em 2009, e reunindo diversas análises no campo das humanidades ambientais, especialmente da História Ambiental, trazendo estudos de caso variados: a devastação florestal nas Filipinas durante a colonização e as guerras; a “Marcha até o mar” de Sherman, que destruiu a base agrícola do sul dos EUA; o impacto ambiental das trincheiras na Primeira Guerra Mundial; as experiências de saúde pública com o uso de DDT na Itália durante a Segunda Guerra; a influência da guerra no manejo de aves migratórias na Califórnia; a memória material da resistência francesa na paisagem dos Alpes; e até o redesenho urbano de cidades bombardeadas, como Berlim e Tóquio. (Clique aqui e baixe esse livro de nossa biblioteca). Nesta obra o fio condutor é colocar a guerra como um agente poderoso de transformação ambiental, com efeitos muitas vezes inesperados e duradouros. É um livro que apresenta uma importante coletânea sobre o estado da arte sobre a História Ambiental da Guerra. Os estudos aqui integram a dimensão ambiental na análise histórica.

Quando vamos ensinar as grandes guerras vale muito uma educação ambiental a partir da análise da História Ambiental das guerras. Podemos realizar trabalhos e pesquisas com nossos estudantes sobre as guerras usando História Ambiental. Por exemplo, analisando o antes do conflito, apontando o que ocorre nesse momento, como as consequências da corrida armamentista, que já consome imensas quantidades de recursos naturais, como metais e combustíveis fósseis. Diversos estudos apresentam informações sobre as consequências dos conflitos,  as batalhas liberam grandes volumes de poluentes e contaminantes, tipo CO₂, gás mostarda, a radiação de bombas, e muitas outras coisas, e também promovem a transformação de paisagens, contaminam solos e águas com metais pesados e explosivos. E, se pensarmos no pós conflitos, podemos abordar os impactos sobre a população, contaminação, o surgimento ou agravamento de doenças, o colapso alimentar, hídrico, e demais fatores que prejudicam a resiliência da natureza, como os impactos da presença militar prolongada e a poluição gerada por esses processos no controle territorial pós guerras. Apontamos inúmeros fatores "negativos", pois são poucos os positivos, e mesmo existindo, ainda á processos de contaminação, mesmo que lenta, como os vestígios de carcaças da guerra, recebem novas funções pelos seres vivos do mar, como exemplo leia essa reportagem: Million dollar waste! Amazing photos reveal the expensive US military equipment dumped at the bottom of the Pacific Ocean after the Second World War because it was too expensive to bring home.

Existe uma diversidade de estudos sobre o tema História e Guerras, por exemplo, no google acadêmico fiz uma busca ao escreves aqui, usando os termos ("Enviromental history" + "Wars"), e como resultados apareceram mais de 80 estudos. Clique aqui e veja. Outras palavras chaves podem ser usadas para ampliar as buscas. Não necessariamente estudos de história feito por historiadores estão na mira, aqui interessa a interconexão com outras áreas, que com seus estudos produzem elementos para a produção de uma narrativa de História Ambiental. 

Agora, focando um pouco sobre a Segunda Guerra Mundial, peguei umas ideias do Observatório de Conflitos e Meio Ambiente (CEOBS). Sobre o evento da 2GG eles apresentam alguns aspectos interessantes para a análise da História Ambiental. Como a necessidade de produção em massa, relaxou padrões ambientais e deixou como herança áreas altamente contaminadas, conhecidas como “Superfund” nos EUA.  Superfund são antigas bases militares espalhadas pelo mundo e que durante sua existência despejou  resíduos tóxicos, como metais pesados a solventes e óleos, diretamente ao ambiente. A imagem a mostra uma dessas áreas, na legenda um link para uma reportagem.



A guerra não foi travada apenas com armas, mas também com uma infraestrutura, na construção de estradas, portos e pistas de pouso, coisas que eram essenciais para a movimentação de tropas, armamentos e suprimentos. Ao abrir caminhos em florestas ou modificar áreas costeiras, novas rotas também facilitaram a introdução de espécies invasoras, plantas, insetos e pequenos animais, que se espalharam rapidamente e transformaram ambientes inteiros. Em regiões de clima extremo, como desertos, as alterações no solo e a presença militar prolongada aceleraram processos de erosão e degradação. Já em florestas tropicais, a devastação foi ainda mais visível: ilhas do Pacífico, como Iwo Jima e Okinawa, perderam praticamente toda a sua cobertura vegetal durante os combates, resultado da intensa movimentação militar, dos bombardeios e do uso massivo dos recursos naturais (CEOBS).

O uso de substâncias como CFCs (mais tarde ligados à destruição da camada de ozônio) e pesticidas como o DDT marcou a época. Ao mesmo tempo, milhões de hectares de florestas foram devastados na Europa, Rússia e Filipinas, deixando cicatrizes na biodiversidade. A descoberta e uso das armas atômicas inauguraram uma era de riscos radioativos. Testes nucleares posteriores liberaram materiais que contaminam solo, água e cadeias alimentares até hoje. Milhões de toneladas de resíduos radioativos se tornaram uma herança de difícil gestão para gerações futuras. Bombardeios criaram crateras que se tornaram criadouros de mosquitos, agravando a malária na Itália. Já o uso massivo de DDT para conter epidemias como o tifo transformou ecossistemas inteiros, afetando não apenas mosquitos, mas também peixes, aves e abelhas. Milhões de toneladas de entulho alteraram a geografia das cidades europeias. Em Berlim, por exemplo, seis anos após o fim da guerra ainda restavam 25 milhões de m³ de destroços. Muitas dessas ruínas foram reutilizadas para aterros, parques e remodelação urbana (CEOBS).

E no Brasil, de que forma podemos analisar a Segunda Guerra
 com a lupa da História Ambiental? 

A resposta desta pergunta produz uma bela aula de História Ambiental da Segunda Guerra Mundial e da Era Vargas. Pode ser usada na 9.série ou 2 ou 3 ano do EM. É contexto da 2GG, o Brasil, mesmo longe da linha de frente, foi profundamente integrado à engrenagem do conflito. Se, de um lado, nossa participação é lembrada pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, de outro, podemos integrar a História Ambiental para analisar de que forma o país participa do processo como produtor de matéria-prima e mercadorias, e o impacto  impacto ambiental decorrente em nosso território.

O lance é compreender como a natureza foi mobilizada e transformada em recurso estratégico para a guerra. No caso brasileiro na sala de aula podemos usar o caso da “Batalha da Borracha” na Amazônia e a intensificação da mineração de ferro, que fez os EUA auxiliar o polo industrial no pais.

Imagem gerada com IA
Durante a guerra, com a ocupação japonesa no Sudeste Asiático, os Aliados perderam acesso à principal região produtora de borracha do planeta. O material era indispensável para pneus, aviões e equipamentos militares. É aí que entre o Brasil, para a assumir um papel estratégico no abastecimento dos Estados Unidos. Com isso ocorre a Batalha da Borracha, um acordo entre Getúlio Vargas e Washington que recrutou e encaminhou milhares de trabalhadores nordestinos, os chamados “soldados da borracha”, para os seringais amazônicos. Com isso ocorre aumento da exploração, prejudicando a floresta, ao mesmo tempo migrações, e com elas diversos problemas aos que ficam, e aos que vão, assim como para os ambientes. No front de exploração da atividade da borracha, a pressão sobre a floresta prejudicou sua resiliência, e passou haver necessidade de abertura de novas áreas de coleta e a concentração de trabalhadores em determinados pontos causaram desmatamento, degradação e desequilíbrio no ecossistema. Com o fim da guerra e a retomada da produção asiática, a borracha brasileira perdeu relevância e isso aparece nos livros didáticos. 

Além da borracha, o momento histórico do Brasil durante a Segunda Guerra Mundial também evidencia o papel do ferro no desenvolvimento industrial. A produção de ferro envolve um processo complexo, que gera grandes impactos ambientais e sociais. Durante o conflito, o país tornou-se um importante fornecedor do minério para os Estados Unidos, o que impulsionou avanços na siderurgia nacional por meio do intercâmbio entre os dois países. 

Esse movimento levou à criação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ), fruto dos acordos entre o governo Vargas e os norte-americanos. O objetivo era claro: garantir o fornecimento de aço para armas, veículos e navios dos aliados. Esse processo consolidou a mineração e a siderurgia como motores da industrialização brasileira, mas também intensificou impactos ambientais já conhecidos: desmatamento, alteração de paisagens e poluição hídrica decorrente da atividade mineradora.


Além desses casos, há muitos outros exemplos. No Vale do Itajaí, por exemplo, a indústria madeireira expandiu sua atuação ao firmar acordos comerciais com os EUA. Isso levou a uma exploração ainda mais intensa das florestas, incluindo espécies como a canela-sassafrás, utilizada para a produção de safrol. Esses exemplos mostram que, mesmo distante das frentes de combate, o Brasil participou do esforço de guerra por meio da exploração intensiva de seus recursos naturais — e com isso deixou também uma marca na sua História Ambiental.

A Segunda Guerra Mundial não pode ser compreendida apenas como um evento político e militar. Foi também uma guerra contra a natureza. A mobilização de recursos, como a borracha da Amazônia, o ferro das minas brasileiras, a madeira do Vale do Itajaí ou o petróleo do Oriente Médio, etc, mostra que os conflitos armados não se sustentam sem transformar profundamente os ambientes. Estradas, portos, pistas de pouso, indústrias e minas não desapareceram após 1945 e são objetos de estudo assim como  cicatrizes ambientais que persistem até hoje.

É por isso que a História Ambiental é fundamental no ensino e na pesquisa histórica. Ela permite que enxerguemos os processos de destruição ecológica não como efeitos colaterais da guerra, mas como parte estrutural de sua lógica. A devastação de florestas, a contaminação de solos e águas, o uso de químicos e metais pesados, a exploração de trabalhadores e territórios, tudo isso produziu prejuízos que atravessam o tempo e ainda recaem sobre o presente.

Para nós, historiadores e professores, integrar a dimensão ambiental no estudo das guerras é mais do que ampliar os temas tratados em sala de aula: é revelar que a disputa pelo controle, uso e modificação dos elementos da natureza é um dos motores centrais da guerra. E, ao mesmo tempo, é uma chave para pensar criticamente os dilemas ambientais do mundo contemporâneo. Afinal, compreender a destruição do passado é condição necessária para construir alternativas mais sustentáveis e evitar que os conflitos de amanhã repitam as catástrofes ambientais de ontem.

Referências que pesquisei e delas extrai algumas informações para compor o texto

BANKOFF, G. (2009). Wood for War: The Legacy of Human Conflict on the Forests of the Philippines, 1565–1946. In C. E. Closmann (Ed.), War and the Environment: Military Destruction in the Modern Age (pp. 32–48). Texas A&M University Press.

BRANTZ, D. (2009). Environments of Death: Trench Warfare on the Western Front, 1914–1918. In C. E. Closmann (Ed.), War and the Environment: Military Destruction in the Modern Age (pp. 68–91). Texas A&M University Press.

BRADY, L. M. (2009). Devouring the Land: Sherman’s 1864–65 Campaigns. In C. E. Closmann (Ed.), War and the Environment: Military Destruction in the Modern Age (pp. 49–67). Texas A&M University Press.

CEOBS. (2025, May 5). How does war damage the environment? The Conflict and Environment Observatory. Disponível em: https://ceobs.org/how-does-war-damage-the-environment/

DAILY MAIL. (s.d.). Million Dollar Point site where the US army dumped expensive equipment after WW2 pictured. Daily Mail Online.

DIEFENDORF, J. M. (2009). Wartime Destruction and the Postwar Cityscape. In C. E. Closmann (Ed.), War and the Environment: Military Destruction in the Modern Age (pp. 171–192). Texas A&M University Press.

HALL, M. (2009). World War II and the Axis of Disease: Battling Malaria in Twentieth-Century Italy. In C. E. Closmann (Ed.), War and the Environment: Military Destruction in the Modern Age (pp. 112–131). Texas A&M University Press.

HASSAN, M. (s.d.). The Environmental Impact of WWII. Middle East Theater. Disponível em: The Environmental Impact of WWII. Acesso 24/08/2025.

LAAKKONEN, S. (2017, April 21). Today’s environmental problems sparked by World War II. University of Helsinki. Disponível em: Today’s environmental problems sparked by World War II Acesso em 24/08/2025.

MCNEILL, J. R., & PAINTER, D. S. (2009). The Global Environmental Footprint of the U.S. Military, 1789–2003. In C. E. Closmann (Ed.), War and the Environment: Military Destruction in the Modern Age (pp. 10–31). Texas A&M University Press.

PEARSON, C. (2009). Creating the Natural Fortress: Landscape, Resistance, and Memory in the Vercors, France. In C. E. Closmann (Ed.), War and the Environment: Military Destruction in the Modern Age (pp. 150–170). Texas A&M University Press.

RAI, M. V. (2022, June 27). The Impact of War on Our Natural Environment. FAWCO. Disponível em: The Impact of War on Our Natural Environment Acesso 24/08/2025.

UEKÖTTER, F. (2009). Total War? Administering Germany’s Environment in Two World Wars. In C. E. Closmann (Ed.), War and the Environment: Military Destruction in the Modern Age (pp. 92–111). Texas A&M University Press.

WILSON, R. (2009). Birds on the Home Front: Wildlife Conservation in the Western United States during World War II. In C. E. Closmann (Ed.), War and the Environment: Military Destruction in the Modern Age (pp. 132–149). Texas A&M University Press.

Sites que consultei:

War on the land : an environmental history of the Second World War and its aftermath in South Eastern France, 1939-1945




The Environmental Impact of WWII

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Novos projetos de Iniciação Científica aprovados pelo PIBIC/CNPq.

É com satisfação que comunicamos a aprovação de dois projetos de Iniciação Científica junto ao PIBIC/CNPq. Com as atividades continuamos a mais de 20 ano realizando iniciações científicas o que fortalece o grupo e a área na instituição. Os projetos foram aprovados nos editais (Edital 06/2025 -
PROPEX - PIBIC/CNPq - Apoio a projetos de pesquisa de Iniciação Científica; e Edital 08/2025 PROPEX - Programa Institucional de Iniciação Científica no Ensino Médio - PIBIC-EM/CNPq), pelo professor Gilberto. 

O primeiro deles é o projeto “A divulgação científica de História Ambiental nas redes sociais: investigando a produção dos grupos de pesquisa do Sul e Sudeste (Ano 2)”, que dá continuidade às investigações do projeto-guarda-chuva A divulgação científica nas redes sociais, é coordenado pelo professor Martin. Ele será desenvolvido por dois estudantes do 2º ano do Ensino Médio da Escola Técnica do Vale do Itajaí, sob orientação do Martin, que acompanha os jovens pesquisadores na própria escola como professor e orientador de IC.

Na graduação, tivemos aprovado o projeto “História ambiental e desenvolvimento regional da agropecuária no Vale do Itajaí (SC) na primeira metade do século XX”, vinculado ao projeto-guarda-chuva Agricultura e pecuária: história ambiental e desenvolvimento regional no Vale do Itajaí (SC), coordenado por Gilberto. As orientações serão realizadas em conjunto entre os professores Martin e Gilberto, fortalecendo a troca de experiências entre docentes e discentes.

Também está em desenvolvimento o projeto coordenado por Nelson, junto ao NEAB-FURB: “As comunidades quilombolas em Santa Catarina: o estado da arte, seus temas e a valorização das suas manifestações étnico-culturais”. O projeto em desenvolvimento com um estudante da graduaçao, busca mapear, compreender e valorizar a presença quilombola no estado, destacando suas lutas, saberes e expressões culturais. Além de contribuir para a preservação da memória e identidade dessas comunidades, a iniciativa também reforça a importância do reconhecimento e da valorização da diversidade étnica em Santa Catarina.

Esses resultados reforçam a importância da inserção de estudantes da educação básica e superior em atividades de investigação científica, aproximando ensino e pesquisa e ampliando os olhares sobre a História Ambiental no Vale do Itajaí.

sábado, 2 de agosto de 2025

Antropoceno: um novo problema para a História Ambiental!

Você já parou para pensar em como nossas ações estão moldando o futuro do planeta?

O termo Antropoceno tem ganhado cada vez mais destaque, não só na ciência, mas também em nosso dia a dia, para descrever uma nova era geológica em que a humanidade se tornou uma força transformadora em escala planetária. Mas o que isso realmente significa para nós e para a forma como contamos a nossa própria história?

Para aprofundar essa discussão e trazer luz a um debate complexo e multifacetado, temos o prazer de apresentar o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Graduação em História, intitulado Antropoceno: um novo problema para a História Ambiental, de autoria de Desirée de Paula Irussa Martins. Realizado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sob a orientação do Professor Dr. Alfredo Ricardo Silva Lopes.

A pesquisa de Desirée de Paula Irussa Martins surge de uma inquietação pessoal e de um desejo de compreender a fundo a crise climática e suas prováveis consequências irreversíveis. O objetivo principal é localizar historicamente o debate sobre o Antropoceno e oferecer uma compreensão a partir dos preceitos teórico-metodológicos da História Ambiental. 

O estudo reconhece que, embora todos compartilhemos as consequências das transformações globais, a participação ativa e as responsabilidades nos processos que as causaram não são equitativas. A autora questiona a ideia de uma "humanidade" genérica, defendendo que é crucial identificar os sujeitos e decisões reais que levaram às perturbações ambientais. A pesquisa aponta que a narrativa inicial e dominante do Antropoceno, ao elevar o "antropos" (humano) a um agente coletivo, obscurece desigualdades e responsabilidades históricas. Ela defende que esta compreensão influencia as "soluções" propostas (como mitigação e geoengenharia) que podem não abordar as raízes sistêmicas do problema. 

O trabalho se aprofunda em narrativas alternativas ao Antropoceno, como o Chthuluceno de Donna Haraway e o Negroceno de Malcom Ferdinand. Com isso a autora buscou descentralizar o excepcionalismo humano, propondo a "simpoiése multiespécie" – a criação e colaboração entre múltiplos agentes, humanos e não humanos. Também revela as raízes coloniais e escravistas da crise ecológica, conectando a destruição ambiental à dominação colonial e ao racismo ambiental, defendendo que as lutas antirracistas e ecológicas são inseparáveis. A autora propõe pensar o Antropoceno como um cronotopo, um conceito que articula tempo e espaço em uma narrativa. Isso permite entender que a forma como nomeamos e narramos essa era tem implicações éticas e políticas, moldando nossa compreensão da crise e os caminhos que tomaremos.

Para Desirée, o estudo da História Ambiental e a busca por "cronotopos outros" (outras narrativas) são essenciais para combater a "crise imaginativa" de futuros melhores que sua geração enfrenta. A pesquisa busca não nos paralisar, mas sim possibilitar a criatividade de ação e a construção de mundos mais justos. O trabalho não defende a extinção do termo Antropoceno, que é reconhecido como útil para expandir o debate para além dos muros acadêmicos. Em vez disso, ele argumenta pela necessidade de expandir a significação do conceito, abraçando a multiplicidade de narrativas que se complementam, como os "tentáculos" de Donna Haraway e a ideia de "criar mundos" de Malcom Ferdinand.

Este TCC é um convite à reflexão crítica sobre o nosso presente e a um engajamento mais consciente na construção do futuro. Ele mostra como a História Ambiental, ao romper com visões dualistas e buscar a complexidade ambiental, é fundamental para compreender as interconexões entre sociedade e natureza, poder e cultura. Acompanhe nosso blog para mais insights sobre este tema vital!

Fonte: 
MARTINS, Desirée de Paula Irussa. Antropoceno: um novo problema para a História Ambiental. 2025. 41 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Departamento de História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2025.
Disponível em: 
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/266533/TCC%20Desir%c3%a9e%20%28vers%c3%a3o%20final%29%20%284%29.pdf?sequence=1&isAllowed=y
Acesso em: 27/07/2025

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Mata Atlântica e herança negra: um mergulho na História Ambiental do Parque Estadual dos Três Picos!

Você sabia que grande parte da realidade ecológica do Parque Estadual dos Três Picos (PETP), no Rio de Janeiro, possui uma profunda herança cultural negra? 

Um estudo recente, História ambiental das populações africanas no Parque Estadual dos Três Picos, Rio de Janeiro, de Wallace Marcelino da Silva, Carlos José Saldanha Machado e Rodrigo Machado Vilani, revela como a influência dos povos africanos escravizados moldou as paisagens da Mata Atlântica fluminense, desafiando a visão eurocêntrica da nossa história ambiental.

O estudo inicia apresentando a História Ambiental como um campo de estudo que surgiu na década de 70, buscando entender a relação constante entre as sociedades humanas e o mundo biofísico ao longo do tempo e do espaço. Essa área reconhece a natureza como um agente histórico fundamental, e não apenas um cenário passivo. No entanto, mesmo no Brasil, um país de maioria negra, ainda há poucos pesquisadores negros atuando nesse campo. Este estudo, portanto, é uma contribuição vital para preencher essa lacuna e reafirmar a importância das populações negras na preservação do bioma Mata Atlântica. O Parque Estadual dos Três Picos - PETP, é a maior unidade de conservação de proteção integral no estado do Rio de Janeiro, abrangendo cerca de 65.000 hectares em cinco municípios: Cachoeiras de Macacu, Guapimirim, Teresópolis, Nova Friburgo e Silva Jardim. Além de ser um centro de rica diversidade ecológica, cultural e geodiversidade, com espécies ameaçadas e endêmicas, suas nascentes e florestas são cruciais para a população da região.

https://www.scielo.br/j/asoc/a/YGhPNzy67BLKGWRFJMGgm9j/?format=pdf&lang=pt


A pesquisa, de abordagem qualitativa, buscou descrever e analisar a influência africana no PETP. Utilizando levantamentos bibliográficos e documentais, ela investigou como a paisagem do parque foi moldada desde os tempos dos "Sertões de Macacu" (século XVIII) e qual a importância dessa realidade biocultural negra para o PETP hoje. O Brasil recebeu o maior contingente de africanos para fins de escravização nas Américas. Esses povos, ao chegarem em terras desconhecidas, interagiram e modificaram as paisagens, deixando um legado duradouro. 

O estudo destaca diversas formas dessa influência:

• Os africanos trouxeram consigo plantas que hoje fazem parte da nossa paisagem e cultura alimentar. Podemos citar o café, o quiabo, o inhame, a mamona e diversas espécies de gramíneas. Essas gramíneas, por exemplo, adaptaram-se e hoje dominam vastas áreas de pastagens no PETP, muitas vezes conferindo um aspecto semelhante às savanas africanas. Outras árvores emblemáticas como o baobá e o flamboyant também vieram com eles, interligadas às conexões culturais e religiosas como o candomblé.
• Além das plantas, vieram métodos de cozimento, técnicas de mineração e ferraria, e um vasto conhecimento tradicional. Essas trocas, chamadas de intercâmbios bioculturais, foram fundamentais para a história alimentar do Brasil.
•  As paisagens foram africanizadas pelas práticas agrícolas e pela presença dessas plantas, integrando-se à biota nativa. Isso é visível até hoje em quintais de pequenos camponeses e terreiros de religiões de matriz africana, que abrigam uma rica diversidade de plantas nativas e africanas.
• Diante da escravização, os africanos resistiram através da formação de quilombos e mocambos nas florestas da região. Nestes locais, eles mantinham seus modos de vida, com caça, pesca e cultivo de plantas conhecidas de suas terras de origem, formando pequenos comércios à margem da economia colonial. As áreas de difícil acesso do parque, como Macaé de Cima, ainda guardam vestígios desses antigos refúgios negros.
• O estudo adota a perspectiva do Capitaloceno, que questiona a ideia de uma "Era do Homem" (Antropoceno) e aponta a construção do capitalismo e as atividades econômicas coloniais como as verdadeiras causas das crises ecológicas e da exploração de povos e da natureza. Os africanos e a natureza foram "ferramentas" da expansão do capital global, em processos que resultaram em "holocaustos coloniais".

https://www.scielo.br/j/asoc/a/YGhPNzy67BLKGWRFJMGgm9j/?format=pdf&lang=pt

Apesar da devastação imposta pela escravização e pelas monoculturas de cana-de-açúcar e café, que exigiram uma enorme quantidade de mão-de-obra escravizada e desmatamento, a floresta renasceu em muitas áreas, especialmente nas partes mais altas do parque. Hoje, a influência africana no PETP se manifesta não só na floresta e em suas espécies, mas também nas expressões culturais e nos modos de vida das comunidades locais, muitos deles descendentes diretos dos escravizados. Esses territórios negros evidenciam a sobrevivência e a resistência cultural afrodiaspórica que desafiou e sobreviveu ao sistema colonial. No entanto, essas paisagens valiosas e as populações camponesas, muitas delas de origem negra, enfrentam novas ameaças: o avanço de condomínios de luxo, empresas de água mineral, atividades industriais e o turismo desordenado, que colocam em risco tanto a Mata Atlântica quanto sua rica herança cultural.

Este estudo é uma importante ferramenta para que as visões afrodiaspóricas da História Ambiental reafirmem a relevância das populações negras na preservação da Mata Atlântica. É um convite para olharmos a natureza ao nosso redor com outros olhos, reconhecendo as histórias e culturas que a moldaram.

Referências do estudo: DA SILVA, Wallace Marcelino; MACHADO, Carlos José Saldanha; VILANI, Rodrigo Machado. História ambiental das populações africanas no Parque Estadual dos Três Picos, Rio de Janeiro. Ambiente e Sociedade. Vol. 28, 2025. 

Disponível em: 
<https://www.scielo.br/j/asoc/a/YGhPNzy67BLKGWRFJMGgm9j/?format=pdf&lang=pt>. 
Acesso em 27/07/2025.