"Eu sou o que me cerca. Se eu não preservar o que me cerca, eu não me preservo".
José Ortega y Gasset

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

A História Ambiental no brasão de Blumenau?


O brasão de Blumenau é mais do que um símbolo oficial, ele é um "lugar de memória" que articula a história política e a identidade local. Contudo, analisá-lo sob a perspectiva da História Ambiental o revela como um monumento a uma ideologia de desenvolvimento. Esta postagem propõe uma leitura crítica do brasão para desvendar o que seus símbolos omitem. Ao decifra-lo por esse olhar teórico metodológico podemos descobrir os tangíveis custos socioecológicos, que hoje são visíveis na própria paisagem do Vale do Itajaí, ou seja, os efeitos colaterais que essa ideologia desenvolvimentista exigiu do ambiente.

Idealizado pelo historiador Afonso d’Escragnolle Taunay, o brasão possui uma estrutura heráldica, um escudo redondo tipo português esquartelado em seis partes, encimado pela tradicional coroa mural que simboliza a autonomia municipal e sua relação com a História do Brasil. Mas a sua composição visual foca em duas narrativas centrais: a herança cultural dos colonizadores e a inserção do município no cenário político nacional. 

Os símbolos nos campos do escudo detalham essa narrativa. Estão presentes representações das províncias alemãs de Braunschweig, Prússia, Saxônia e Baviera, refletindo a origem da maioria dos imigrantes que fundaram a cidade. A inclusão das armas nacionais e de Santa Catarina posiciona Blumenau dentro da ordem político-territorial brasileira, construindo um projeto identitário que ultrapassa as fronteiras locais. Esses elementos constroem uma memória oficial que valoriza a herança cultural e política dos fundadores, celebrando suas origens e sua integração ao novo país.

Ao observar o brasão, uma pergunta emerge: onde estão os rios, as árvores e a fauna nativa que marcaram a paisagem do Vale do Itajaí? Essa omissão é profundamente significativa, se olharmos criticamente pela viés da História Ambiental. Este campo de estudo nasceu justamente de uma crítica à "leitura ‘flutuante’ da história humana", ou seja, à ideia de que a vida social pode ser compreendida de forma isolada do mundo biofisísico onde ela de fato acontece. A ausência de elementos naturais reflete um modelo de desenvolvimento que via a natureza como um pano de fundo a ser conquistado e explorado, e não como protagonista da história. Essa escolha heráldica promove uma "invisibilização ambiental", silenciando as complexas relações materiais entre a sociedade e o ambiente. Enquanto o brasão permanecia em silêncio, a paisagem do Vale do Itajaí gritava com os sons da transformação. 

Os colonizadores que chegaram à região encontraram um território originalmente coberto pela exuberante Mata Atlântica. A ocupação, no entanto, foi conduzida como por um exército de ocupação, avançando pelos vales e deixando um rastro de fumaça e madeira cortada. O protagonista dessa narrativa silenciada é o pioneiro, o colono-lenhador, presente no lado direito do Brasão. O processo de "desbravar" a mata começava com a técnica da "coivara" — o corte e a queima da vegetação para abrir clareiras para casas e roças de subsistência. Logo, a extração madeireira tornou-se a base econômica. Espécies de alto valor como a canela e a peroba foram derrubadas em escala massiva para abastecer os inúmeros "engenhos de serra" que se multiplicaram pela região, financiados por comerciantes da cidade que lucravam com a exportação. Os rios, antes artérias de vida, foram transformados em vias de transporte, seus canais alterados e suas águas sufocadas por balsas e jangadas carregadas de toras. 

A partir da década de 1940, essa pressão se intensificou com a expansão do cultivo de fumo. A nova cultura comercial exigia um tributo ecológico devastador: as estufas para secagem das folhas consumiam quantidades colossais de lenha. Estima-se que "a secagem de 50 mil pés de fumo consome em torno de 70 a 80 metros cúbicos de lenha", e para tal, "toda espécie servia de fonte de energia". O resultado, em meados do século XX, foi um "sério problema socioambiental": erosão, empobrecimento rural, redução da fertilidade dos solos e um crescente êxodo rural. Essa paisagem de profunda transformação, exploração e crise socioecológica é o que foi silenciado pelos símbolos heráldicos.

O historiador Warren Dean, com sua obra seminal A Ferro e Fogo: A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira, ofereceu uma nova maneira de entender essa história. O livro é um marco para a História Ambiental da Mata Atlântica, pois sua principal inovação foi colocar a própria floresta no centro da narrativa. Em certo sentido, Dean escreveu uma história do Brasil a partir da destruição da Mata Atlântica. Sua abordagem reconhece que a transformação do ambiente não é um mero efeito colateral do progresso, mas sim uma parte constitutiva e central da história humana no país. A história de Blumenau e do Vale do Itajaí, como detalhada anteriormente, é um poderoso microcosmo do argumento macro-histórico de Dean, demonstrando precisamente como, "a ferro e fogo", a paisagem regional foi forjada.

Na iconografia popular de Blumenau, a figura do "lenhador" é frequentemente evocada como um símbolo do pioneirismo, representando a coragem e o trabalho árduo dos primeiros colonizadores. Adotando uma perspectiva crítica, informada pela História Ambiental, este símbolo precisa ser reinterpretado. O lenhador não representa apenas a bravura e a conquista. Armado com seu machado, ele personifica o agente humano da transformação descrita: as práticas de exploração que levaram à derrubada de vastas extensões de floresta, à alteração de ecossistemas e à crise socioambiental que culminou na erosão dos solos e no empobrecimento de tantas famílias. Ele é o símbolo do preço ecológico do desenvolvimento celebrado no brasão.

O brasão de Blumenau nos convida a uma reflexão crítica sobre o custo do desenvolvimento que marcou a história da cidade e de tantas outras no Brasil. Ao expor o que foi silenciado, estamos ativamente construindo uma memória mais completa e responsável. Este exercício de análise é, em si, um ato de escrever uma das "novas histórias" que a Mata Atlântica necessita. Reinterpretar nossos símbolos à luz de uma consciência ecológica é um exercício essencial de "memória e responsabilidade ambiental". Permite-nos reconhecer a natureza não como um pano de fundo passivo, mas como protagonista histórica de nosso território. Essa nova perspectiva é crucial para enfrentarmos os desafios atuais, como deslizamentos de terra ligados à erosão histórica e a urgente necessidade de conservar e recuperar os remanescentes de floresta que ainda persistem, escrevendo assim um futuro mais justo para a sociedade e para a natureza. De qualquer forma, apresentamos aqui uma análise do brasão. Trata-se de uma leitura inicial, que pode ser ampliada e melhor aprofundada — o que, aliás, renderia um excelente ensaio. Convidamos você a expandir essa reflexão: comente aqui suas interpretações e representações sobre o brasão.

Referências

BLUMENAU (SC). Prefeitura Municipal de Blumenau. Símbolos cívicos: brasão de Blumenau. Blumenau, [s.d.]. Disponível em: https://www.blumenau.sc.gov.br/blumenau/simbolos-civicos. Acesso em: 16 dez. 2025.

PÁDUA, José Augusto; CARVALHO, Alessandra Izabel de. A construção de um país tropical: apresentação da historiografia ambiental sobre o Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1311-1340, out.-dez. 2020. DOI: 10.1590/S0104-59702020000500015.

SANTOS, Gilberto Friedenreich dos; GARROTE, Martin Stabel. Apontamentos para uma história ambiental do uso dos recursos naturais em Botuverá - Vale do Itajaí Mirim – SC. Geosul, Florianópolis, v. 39, n. 90, p. 160-184, mai./ago. 2024. DOI: 10.5007/2177-5230.2024.e96695.

MATA ATLÂNTICA: novas histórias. Coordenação: Marcio Isensee e Sá. Realização: ((o))eco. [S.l.]: Instituto Serrapilheira, 2022. ISBN 978-65-991626-4-0. Publicação em 26 de julho de 2022.

Esta postagem passou por revisão e melhorias do texto com o uso de IA.

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