"Eu sou o que me cerca. Se eu não preservar o que me cerca, eu não me preservo".
José Ortega y Gasset

segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

Pequeno retrato agrícola do Brasil oitocentista: analisando as culturas de Brusque e Nova Trento

O documento que analisamos é um fragmento com o título NOTÍCIAS de BRUSQUE E NOVA TRENTO, escrita por D. Arcângelo Ganarini em 1880 e traduzida do italiano por Lucas Alexandre Boiteux. Publicado na Revista Blumenau em Cadernos, n.09 em setembro de 1959, o texto é muito mais do que um mero catálogo agrícola, mas um documento de profunda tradução ecológica e econômica. Através do olhar de Ganarini, observamos a mentalité de um observador oitocentista, testemunhando a constante tensão entre a memória agrícola europeia e a nova e desafiadora ecologia do sul do Brasil. Esta postagem analisa o relato como uma fonte, que olhamos com a história ambiental, explorando como as aspirações europeias foram mapeadas, e frequentemente redefinidas, por uma paisagem brasileira repleta de promessas e perigos. Ganarini dedica parte significativa de seu relato às culturas que representavam oportunidades de lucro e desenvolvimento econômico para os colonos. Sua análise não é apenas descritiva, mas também prática, avaliando a viabilidade, os riscos e o potencial de retorno de cada planta. É isso que achamos interessante, pois essas informações dialogam com nossas ações de pesquisas de História Ambiental da agropecuária do Vale do Itajaí, projeto desenvolvido dentro da linha de pesquisa História Ambiental e Desenvolvimento Regional (2024-2026).

O autor descreve o café como uma cultura que "vinga também nestas colônias", exceto quando prejudicado pela geada. Ele apresenta dados precisos sobre o apelo econômico da planta: uma densidade de 900 pés por hectare poderia render de 600 a 2.000 quilos, vendidos a 40 ou 50 vinténs o quilo. Contudo, a análise de Ganarini revela que a escolha de cultivar café era mais do que um cálculo econômico; era uma decisão de vida ou morte. Ele relata a trágica experiência de outros imigrantes seduzidos por lucros vistosos: "muitos dos nossos compatriotas reunidos no Rio, combinaram procurar as colônias da província do Espírito Santo, aonde muitos sob aquêle clima ardente e sítios malsãos, adoeceram e não poucos lá deixaram a vida...". Neste contexto, a geada de Santa Catarina, um risco manejável com conselhos práticos como "plantá-la debaixo de outras árvores e cobri-la de folhas sêcas", parecia um mal menor em comparação com as doenças tropicais mortais. Mesmo assim, ele critica os colonos locais que não eram "mais solertes" para cultivar o grão para consumo próprio, pagando entre 70 e 90 vinténs por um produto que poderiam ter em seus quintais.

O cultivo de algodão na província limitava-se às "necessidades da família". Ganarini detalha o processo de manufatura caseira: os capulhos eram colhidos, as sementes retiradas com um torno, o fio era produzido no fuso, tingido com "ervas, raízes ou cascas" e, por fim, tecido. A sua frustração com os colonos por não adotarem essa prática revela uma profunda ansiedade cultural. O apelo para que as mulheres italianas imitassem as brasileiras — que "não deveriam ir dormir antes das galinhas e levantar-se antes do sol" — era menos sobre economia simples e mais sobre prevenir um percebido declínio civilizacional, ou seja, um discurso etnocêntrico. A urgência era material e simbólica, pois "as roupas trazidas da Europa se acham esfarrapadas, e se não forem substituídas, será preciso andar muito breve em trajes de Adão."

O tabaco é descrito como uma planta que "consola sobremodo os nossos colonos". Ganarini ressalta o contraste com a Europa, onde cultivar a planta era um ato fiscalizado. No Brasil, havia a liberdade de "cultivá-la sem licença das finanças, poder colhê-la e prepará-la à luz do sol, sem temer os espiões e cair no contrabando". Ele descreve os métodos locais, como o cigarro enrolado em "folhas mais finas das espigas de milho" e o "fumo em corda", e nota a introdução de variedades europeias ("húngaro, brasil, valstanha") pelos colonos. Mais importante, porém, é o detalhe que Ganarini astutamente observa: o tabaco, junto ao café, foi "julgada digna de figurar como ornamento no brazão do pais". Essa elevação a símbolo nacional, comparável ao carvalho e à oliveira na Áustria, transforma a planta de um simples conforto para colonos em um pilar da ambição econômica e do projeto de construção estatal do Império Brasileiro.

O cultivo da videira é apresentado como um caso exemplar de transferência de conhecimento e adaptação. A esperança era grande, com uvas "marzemina" locais rivalizando com as do Adige. A narrativa, porém, vai além da luta contra as formigas. Ganarini revela uma história de experimentação: inicialmente, os brasileiros "deixavam crescer a videira sem a menor cultura" e acreditavam ser impossível fabricar vinho devido à maturação desigual. Foram os colonos italianos que, aplicando técnicas europeias, "podaram as videiras e assim foi corrigida em parte a maturação desigual", provando que a vinicultura era viável. Ameaçados pelas formigas que deixavam a planta "nua e êscas", os colonos mais "pacientes e ativos" desenvolveram uma solução local engenhosa: "cercar o terreno destinado às vinhas com um valo cheio d'água". O sucesso, com colonos já esperando ganhar "mais de 150 florins", era incentivado por notícias de safras prósperas em outras províncias como Rio Grande do Sul e São Paulo, demonstrando a existência de redes de conhecimento agrícola em desenvolvimento.

O documento também é rico em descrições de plantas que formavam a base da dieta dos colonos, revelando um intenso processo de adaptação aos alimentos nativos e a introdução de culturas europeias. O Aipim, descrito como uma das mais importantes raízes alimentares, de farinha "muito mais gostosa do que a da mandioca". Seu uso comum era cozido, com sabor comparado à "castanha". Por ser "muito lactifero", era dado aos animais no inverno. Ganarini destaca sua boa aceitação entre os "trentinos". 

A batata doce de sabor "pronunciado adocicado" e o tamanho, com tubérculos de até três quilos, era usada principalmente na "alimentação de porcos e galináceos", o autor sugere que poderia servir às pessoas se o sabor fosse corrigido com "ingredientes picantes e vinagre e limão". Também são tratados dos Mangaritos e Taiá (Caladium). O texto os diferencia pelo sabor, sendo o mangarito descrito como picante, enquanto o taiá se parece com o aipim. Sua grande vantagem era poderem ser conservados "durante muito tempo depois de arrancadas da terra", substituindo as batatas europeias.

O Cará (Dioscorea), é mencionado duas espécies, sendo uma, com um grande tubérculo usado para fazer pão, e outra, uma trepadeira que produz frutos nos nódulos. A planta, contudo, era vulnerável às formigas, que "as despojam até às vêzes, deixá -las sêcas".

Sobre a Araruta o autor descreve o detalhado processo de extração da farinha (ralar, moer, lavar, decantar) para fazer uma "espécie de gelatina". Embora exportada para o Desterro e Rio de Janeiro, era "pouco ou quasi desconhecida" entre os colonos italianos.

A fonte trata das Batatas "inglesas". As batatas europeias produziam duas vezes ao ano, mas não tão bem quanto nos "países alpinos". Para manter a produtividade, as sementes precisavam ser renovadas da Europa a cada três ou quatro anos.

Ganarini via a sericicultura (criação de bichos-da-seda) como um potencial "bom negócio". Contudo, ele aponta uma significativa barreira cultural: "os brasileiros e alemães têm uma espécie de horror" pelo inseto, não suportando sequer tocá-lo. Ele finaliza com uma crítica às tentativas governamentais de introduzir a cultura, que, em sua visão, resultaram em muito dinheiro gasto com "resultado problemático", pois o país não dispunha "de conhecimentos nem os meios para superá-las".

O relato de D. Arcângelo Ganarini é muito mais que uma lista de plantas, podemos dizer que é um documento que sintetiza a complexa experiência dos imigrantes no sul do Brasil. Ao aprofundar a análise, extraímos conclusões fundamentais sobre este processo histórico. A fonte apresenta uma intensa negociação entre técnicas agrícolas europeias importadas e as realidades ecológicas locais. A busca por adaptação e viabilidade econômica era um processo contínuo de tentativa, erro e inovação. A descrição de cada planta é quase sempre acompanhada de uma análise de seu valor econômico, uso prático ou potencial de lucro, refletindo a mentalidade, o ponto de vista ideológico do narrador, que se apresenta pragmático à sobrevivência e prosperidade na fronteira agrícola. O documento revela as distintas atitudes dos grupos de colonos. Vemos isso na ação italiana de poda nas videiras, em contraste com a prática local, por exemplo. Os desafios iam além de "geadas" e "formigas". O relato situa os problemas locais em um contexto ambiental mais amplo, contrastando os riscos manejáveis de Santa Catarina com o "clima ardente e sítios malsãos" de outras províncias, que representavam uma ameaça mortal.

Relatos como o de Ganarini são fontes primárias indispensáveis. Eles nos permitem compreender a interação dinâmica e, por vezes, conflituosa entre imigrantes, agricultura e o ambiente brasileiro, pintando um retrato vívido da formação do espaço rural no Brasil oitocentista. E se você quer conhecer o material clique aqui para acessar a nossa fonte de análise, e faça você mesmo as suas colocações. Comenta aí!

Referência:

GANARINI, D. Arcângelo. Brusque e Nova Trento: isto é, das colônias Itajaí e Príncipe Dom Pedro na Província de Santa Catarina, Império do Brasil. Tradução de Lucas Alexandre Boiteux. Revista Blumenau em Cadernos, Blumenau, n. 9, tomo II, 1959. p.177-180.

Esta postagem passou por revisão, e melhorias de texto a partir do uso de IA.

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