"Eu sou o que me cerca. Se eu não preservar o que me cerca, eu não me preservo".
José Ortega y Gasset

sábado, 26 de outubro de 2024

Apontamentos sobre a pesca no litoral do Vale do Itajaí em 1950

Nos registros de 1950 sobre a vida rural no Vale do Itajaí, p. 71-74 de Zedar Perfeito Silva, diversas informações apresentam um panorama para entender a história da pesca no vale, principalmente no litoral. Ele aponta que o município de Itajaí, localizado na foz do grande rio que dá nome ao vale, se destacava por sua vocação pesqueira, com atividades distribuídas pelas praias, enseadas e rios da região. Ele aponta que pesca em toda bacia hidrográfica era historicamente relevante, com a captura de peixes e mariscos contribuindo tanto para a economia local quanto para o sustento das comunidades ribeirinhas. Em estudo que realizei em meu mestrado, pesquisei a história da pesca no Rio Itajaí na região de Blumenau, apontando principalmente  a tradição de cultivo de peixes em lagoas, e a formação de uma rede sociotécnica da piscicultura no Vale do Itajaí (clique aqui para ver). A pesca em água doce era praticada principalmente para subsistência dos moradores dispersos nos diversos vales no pé da Serra do Itajaí, seja pelo curso do Rio Itajaí, e pelo Itajaí Mirim. 

Segundo Zedar Perfeito Silva, um marco importante da história da pesca no baixo vale foi a Armação de Itapocorói, hoje Penha, criada em 1777 para a exploração de cetáceos e produção de azeite de baleia. Essa atividade desencadeou a necessidade de expandir a exploração tanto dos recursos marítimos quanto das florestas no entorno para suas demandas. As instalações da Armação de Itapocorói eram complexas e incluíam residências para os administradores, capelas, alojamentos para trabalhadores e escravos, trapiches e engenhos para processar a gordura das baleias. Essas estruturas demandavam grande quantidade de madeira para construção naval e atividade pesqueira. A extração de madeira nativa das florestas da região foi essencial para erguer os edifícios e fabricar os barcos necessários para a pesca. 

Geralmente os barcos de pequeno e médio porte, como baleeiras e canoas, eram esculpidos de troncos inteiros ou montados a partir de pranchas de madeira, utilizando espécies típicas da Mata Atlântica, como: Canela, usada em detalhes de acabamento e em elementos estruturais, por sua resistência ao apodrecimento. Guapuruvu, uma madeira leve e fácil de trabalhar, ideal para a construção de canoas e pequenos barcos. A Peroba e o Cedro eram madeiras duráveis e resistentes à umidade, usadas para a construção das embarcações e do trapiche. Também se usava a Figueira com uma madeira mais flexível, adequada para a produção de remos e outras peças móveis. Para saber mais sobre isso visite o estudo de João Carlos Ferreira de Melo Júnior e Cláudia Franca Barros, Madeiras históricas na carpintaria naval de canoas baleeiras da costa catarinense (disponível clicando aqui)

Além das embarcações, era com a madeira que se faziam equipamentos auxiliares, como carretéis e suportes para a torção de fios de algodão, empregados na confecção de redes. As boias de cortiça ou madeira leve, como a taquara, eram usadas para manter as redes na superfície. A pesca artesanal dessa época exigia reparos frequentes nos barcos e apetrechos, e oficinas improvisadas nas praias e enseadas garantiam essa manutenção. Por sua vez, o trapiche, onde as baleias arpoadas eram desembarcadas, era construído com grossas vigas de peroba e guapuruvu, resistentes ao desgaste da água salgada.  A madeira também era empregada para alimentar as caldeiras e fogões nos engenhos, onde a gordura das baleias era derretida e transformada em azeite, intensificando o uso dos recursos florestais. Nessa época o escravo era utilizado na industrialização do óleo, enquanto o processo de extração e produção acontecia em um engenho específico. A baleia arpoada era transportada até o trapiche, onde sua gordura era retirada e processada para azeite. 

A pesca de baleias se estendia entre junho e agosto, mas os escravos não participavam da captura; eram alocados exclusivamente para o trabalho nas instalações de beneficiamento. No início do século XIX, Itapocorói contava com uma população de 1.413 pessoas livres e 223 escravizados. Com o declínio das populações de cetáceos, as seis armações de Santa Catarina foram sendo gradualmente desativadas. Para saber mais sobre isso vale a pena realizar a leitura dos textos: As populações de origem africana nas armações baleeiras catarinenses, Pesca da Baleia na Colônia, também o texto Corte e uso das madeiras de lei durante o período da pesca de baleias no litoral de Santa Catarina, assim como o estudo dos colegas de Assis, A pesca da baleia no Brasil: um estudo de história e meio ambiente.


Imagens da caça de baleias em Imbituba foram registradas na década de 1950. Fonte

A extração de madeira para as diversas finalidades foi fundamental para o desenvolvimento da colonização da foz e costa ao redor, e a prosperidade de diversos municípios que temos hoje em nosso litoral. Mas desde o início da colonização a exploração não ficava apenas no litoral, foram feitas excursões em busca de madeiras adentro da floresta adentrava o Vale do Itajaí, onde a mata densa oferecia diversidade e abundância de recursos. Isso desencadeou a abertura de picadas e pequenos portos fluviais para escoar toras, ampliando o impacto ambiental na região. Como aponta José Ferreira da Silva, já haviam além dos indígenas, moradores brasileiros dispersos pela região. Em alguns estudos que realizamos no GPHAVI, na região de Botuverá, encontramos fontes que provam que no século XVIII, expedições de corte de madeira eram realizadas até a região que hoje é o centro do município, e as toras exploradas no local eram organizadas em balsas que desciam o rio Itajaí-Mirim até o litoral. Algumas dessas informações podem ser encontradas nas obras de José Ferreira da Silva, em História de Blumenau e em nossas publicações. A exploração florestal e a caça de baleias tiveram um papel importante propulsor do desenvolvimento e da História, e ao mesmo tempo deve ter causado gradativo aumento de impacto as relações ecológicas. Não há como mensurar o impacto, inicialmente pontual, frende a abundante biodiversidade de mata atlântica, e depois, com mais agressividade concomitantemente aos avanços sociais e tecnológicos da região e a demanda por recursos no meio. Temática interessante para estudos com História Ambiental.

Ainda no trecho analisado, Zedar Perfeito Silva relata que a pesca marinha ocorria em diversos pontos, como as praias de Cabeçudas, Piçarras, Armação de Itapocorói e no mar aberto. Eram usados diferentes tipos de apetrechos, cada um específico para uma espécie ou tipo de pesca, como a rede de fundear (malhão), destinada a peixes maiores como cações. A rede de arrasto, de alta capacidade, mas com custos elevados devido ao tipo de malha utilizada, era feita com fios de algodão torcido, um material que demandava manutenção constante por ser suscetível à deterioração em ambiente marinho. Esse algodão era geralmente proveniente de outras regiões, como o Maranhão, e as próprias comunidades pesqueiras produziam as redes manualmente, empregando técnicas de fiar e trançar aprendidas ao longo das gerações. A rede de tainha era utilizada durante o período migratório desse peixe, e assim como as demais, exigia cuidado especial na confecção. Com o tempo, as redes precisavam ser remendadas para garantir a eficiência na captura e, para isso, os pescadores usavam agulhas de madeira esculpidas localmente, aproveitando resíduos de madeira de árvores nativas, como guapuruvu e canela. Já a puçá, um tipo de rede menor para camarões, seguia o mesmo princípio, mas com malhas mais finas e leves, adequadas à captura de espécies pequenas e delicadas. O espinhel e o caniço, usados para capturar peixes menores como cocoroca e badejo, eram feitos com linhas de algodão trançado e anzóis de metal, mas antes do uso extensivo de metais industrializados, os pescadores improvisavam com ossos, espinhos de peixes maiores e bambu para construir varas e suportes. Em muitos casos, a pesca noturna exigia o uso de boias e lanternas feitas de cortiça e velas de sebo, evidenciando a utilização de recursos naturais acessíveis e de baixo custo. As fibras vegetais desempenhavam um papel essencial nessa atividade, não apenas para a produção de redes, mas também para as cordas e amarras, feitas com cipós ou com fibras de bananeira e taquara, abundantes na região. Essas amarras naturais, embora menos resistentes que os materiais sintéticos introduzidos nas décadas seguintes, eram renováveis e biodegradáveis, causando menos impacto ambiental.

Segundo Zedar Perfeito Silva, a pesca era essencial para a sobrevivência das famílias, e já acontecia no mar a competição com embarcações de Santos e Rio de Janeiro, que prejudicava os pescadores locais. Como alternativa, alguns se deslocam para outras regiões, como o Rio Grande do Sul, para trabalhar como assalariados. Além do pescado, a captura e venda de camarão auxiliava o pescador atenuado suas dificuldades econômicas, especialmente porque da atividade, havia uma salga que prepara o produto para exportação a partir do porto de Itajaí. A atividade da pesca que era considerada artesanal estava limitada pela falta de embarcações mais modernas, e das dificuldades do pequeno pescador adquirir equipamentos para pesca oceânica. Muitos pescadores, como João Aniceto da Costa, que foi entrevistado por Zedar, presente no trecho analisado, era líder local com 55 anos e dez filhos, manifestava interesse em obter barcos de pesca oceânica, e alegava uma necessidade devido  a amplitude do mercado para pescado em toda a região. 

Zedar Perfeito Silva aponta que naquela época, a preparação do pescado envolvia toda a comunidade. Isso se apresenta diferente hoje, por exemplo, em um estudo que realizamos com pescadores artesanais no Cana do Linguado, na Baia da Babitonga, os relatos confirmam que as gerações atuais, filho e netso de pescadores abandonaram as atividades da pesca se dedicando a outros ramos profissionais, para ver este estudo clique aqui.  Depois da captura, as famílias limpam e salgavam o peixe, tarefa que, no passado, era feita por escravos e hoje é realizada pelos próprios pescadores e seus parentes. Peixes escalados são pendurados em varais no terreiro, sendo secos ao ar livre. Parte do pescado é vendida nas redondezas e o excedente é destinado à salga. 

Zedar também aborda a pesca de água doce, de rios. Segundo o autor nos rios, a pesca era realizada desde por pescadores profissionais como amadores, e em grande parte para subsistência. Ele descreve que essa pesca tinha como principais espécies a tainha e bagre, que sobem os rios para desovar. Isso acontecia até 1950-70 ainda na altura de Blumenau. Nos meus estudos identifiquei que as principais espécies de água doce pescadas foram a traíra, piava, e o jundiá. Além disso, a introdução de espécies como a carpa, e tilápia entre outras trouxe novos desafios aos processos ecológicos, pois algumas escaparam dos viveiros e se adaptaram aos ecossistemas locais, competindo com as espécies endêmicas e nativas o que possivelmente modificações o ambiente aquático. Esse tema também um muito importante para ser realizado pela História Ambiental.

Fizemos aqui uma breve análise sobre a pesca, principalmente no litoral do Vale do Itajaí. O trabalho de Zedar Perfeito Silva é um importante documento. Escrito na década de 1950, ele reúne várias temáticas e descreve o Vale como um território rural em processo de urbanização. Os dados são riquíssimos para estudos de História Ambiental. Assim como neste trecho, estaremos analisando outros e produzindo novas reflexões nessa área. As fontes utilizadas estão indicadas, e para melhor organização utilizamos o Google Acadêmico para pesquisas específicas, além do ChatGPT para revisão e correção do texto. Se gostou, compartilhe, inscreva-se no blog e acompanhe nossas atualizações nas redes sociais!

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Pesquisadores publicam estudo na GEOSul

O artigo, Apontamentos para uma história ambiental do uso dos recursos naturais em Botuverá, publicado na Geosul (v. 39, n. 90, mai./ago. 2024), investiga o uso dos recursos naturais em Botuverá entre 1876 e o final do século XX, revelando as transformações sociais e ambientais ocorridas ao longo desse período. O território estudado localiza-se no Médio Vale do Rio Itajaí-Mirim, no município de Botuverá. Uma região que apresenta uma paisagem moldada por serras de encostas íngremes e vales estreitos, originalmente cobertos por uma densa Mata Atlântica. Contudo, a ocupação humana e a exploração dos recursos naturais desde o final do século XIX transformaram profundamente esse ambiente. A pesquisa identificou quatro períodos marcantes na relação da sociedade local com os recursos naturais, cada um caracterizado por diferentes formas de extrativismo, uso do solo e desenvolvimento econômico. Também evidenciou como a exploração dos recursos naturais impactou profundamente o ecossistema da Mata Atlântica. O desmatamento extensivo, especialmente durante os primeiros ciclos de uso do solo e exploração de madeira, alterou o ciclo hidrológico, levando ao assoreamento de rios e riachos. Com a mineração, novas pressões surgiram sobre o meio ambiente, agravando a degradação do solo e dos cursos d'água. Além das mudanças físicas na paisagem, o estudo destaca que a transformação das atividades produtivas, do extrativismo para a indústria, gerou novos desafios. Hoje, Botuverá enfrenta a necessidade de equilibrar desenvolvimento econômico e conservação ambiental, especialmente em um contexto de maior conscientização sobre a importância de preservar os remanescentes da Mata Atlântica.

O processo de exploração, que se estendeu por mais de um século, reflete um ciclo que começou com a subsistência, passou pela agricultura e mineração e culminou na industrialização. Cada etapa trouxe desenvolvimento econômico, mas também impactos ambientais significativos, exigindo novas práticas de gestão dos recursos naturais. Esse panorama destaca a importância de olhar para o passado para entender como a interação entre natureza e sociedade moldou o presente. A História Ambiental, ao revelar essas conexões, oferece subsídios fundamentais para repensar as estratégias de uso do território e buscar formas mais sustentáveis de desenvolvimento para o futuro. A pesquisa contou com financiamento FAPESC, Estado de santa Catarina. 

Para ver o estudo na integra clique aqui.

domingo, 20 de outubro de 2024

O que os Estudantes Pesquisadores do PIBIC CNPq Ensino Médio da FURB estão desenvolvendo em suas Pesquisas de Iniciação Científica?

Imagem criada com IA
No decorrer da Iniciação Científica dos estudantes do PIBIC CNPq Ensino Médio da FURB, já foram realizadas três reuniões de orientação. Nesses encontros, os pesquisadores em formação tiveram a oportunidade de aprender uma metodologia importante para o trabalho acadêmico: o fichamento de textos, ferramenta essencial para organizar as leituras e sintetizar as informações.

Os estudantes foram apresentados a diversas obras de referência, com destaque para o artigo Para Fazer História Ambiental, de Donald Worster. Além disso, tiveram contato com a entrevista de Worster intitulada Por uma História Ambiental Planetária, publicada na revista Esboços. Outro texto importante que está sendo trabalhado é A Última Catástrofe Planetária? História ambiental e história do tempo presente, uma aproximação necessária, de Elenita Malta Pereira e Alfredo Ricardo Silva Lopes.

Com base nessas leituras iniciais, os estudantes estão se preparando para realizar uma revisão bibliográfica que busca explorar o campo da História Ambiental, analisando o que é, como se originou e como se desenvolve o estudo dessa área. Essa abordagem visa não apenas consolidar o entendimento teórico, mas também identificar as principais vertentes e debates acadêmicos que sustentam a História Ambiental no cenário contemporâneo.

Além das obras mencionadas, os estudantes também estão estudando conceitos fundamentais, como o de Divulgação Científica, um aspecto crucial para comunicar e disseminar os resultados das pesquisas acadêmicas. Nesse contexto, estão realizando a leitura de textos como O que é Divulgação Científica?, de Henrique César da Silva, que oferece uma introdução ao conceito e à importância da divulgação científica no Brasil.

Outro material de estudo é o texto Divulgação Científica e Percepção Pública de Brasileiros(as) sobre Ciência e Tecnologia, de Fernando Delabio, Débora Piai Cedran, Lorraine Mori e Neide Maria Michellan Kioranis, da Universidade Estadual de Maringá. Este artigo aborda a relação entre a popularização da ciência e a percepção pública da ciência e da tecnologia entre os brasileiros, explorando como o entendimento dessas áreas impacta a sociedade. Com uma abordagem crítica e analítica, os estudantes aprofundam-se nas interseções entre a ciência, sua comunicação e o público em geral, contribuindo para um melhor entendimento do papel da ciência na vida cotidiana.

Essas leituras e reflexões são parte essencial do trabalho de Iniciação Científica, permitindo que os alunos desenvolvam um entendimento profundo das áreas de estudo, além de aprimorar habilidades analíticas e críticas necessárias para a construção de suas próprias pesquisas. A pesquisa sobre a divulgação científica dos grupos de pesquisa de História Ambiental no Sul e Sudeste do Brasil vai sendo desenvolvida, acompanhe as informações aqui em nosso blog, e na própria página destina ao projeto Divulgação Científica em redes Sociais.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Resenha: Historia ambiental de América Latina: origen, principales interrogantes y lagunas

Vamos realizar uma leitura e resenha do estudo Historia ambiental de América Latina: origen, principales interrogantes y lagunas, de Lize Sedrez, disponível no link. O texto integra o volume Repensando la naturaleza: encuentros y desencuentros disciplinarios en torno a lo ambiental, organizado por Germán Palacio e Astrid Ulloa. Publicado em 2002 pela Universidad Nacional de Colombia, Instituto Amazónico de Investigaciones Imani e Instituto Colciencia, o texto oferece uma análise crítica do desenvolvimento da História Ambiental na América Latina, abordando suas origens, principais questões e as lacunas que ainda precisam ser exploradas. 

Este texto de Sedrez é fundamental para entender essa linha de produção de conhecimento, a História Ambiental, abordando as origens, os principais questionamentos e as lacunas dessa disciplina na América Latina. Sedrez propõe uma reflexão sobre como essa disciplina pode ampliar a compreensão das interações entre sociedade e meio ambiente na região, destacando a importância de uma abordagem interdisciplinar que dialogue com outras áreas do conhecimento.

No início do artigo, Lize Sedrez compartilha a experiência da autora como editora de uma bibliografia sobre a história ambiental da América Latina, iniciada como um projeto de verão na Universidade de Stanford em 1999. Inicialmente supervisionado por John Wirth e José Augusto Drummond, o projeto expandiu-se, envolvendo uma equipe de pesquisadores de diversas universidades americanas. A bibliografia, que inclui textos clássicos de historiografia latino-americana e produções acadêmicas de diferentes áreas, busca compreender como as sociedades humanas se relacionaram com o ambiente ao longo do tempo.

A autora destaca que, apesar da rica historiografia ambiental na América Latina, ela ainda é fragmentada e multidisciplinar, sem ser verdadeiramente interdisciplinar. Muitos historiadores latino-americanos, mesmo sem se definirem como "historiadores ambientais", consideram o ambiente em suas análises sociais. Exemplos notáveis incluem Capistrano de Abreu, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, cujas obras abordam a interação entre a natureza e as sociedades humanas no Brasil.

A história ambiental na América Latina se consolidou mais recentemente, a partir dos anos 1980, com a contribuição pioneira de Nicolo Gligo. Desde então, a disciplina vem se desenvolvendo em torno de questões como as transformações ambientais e o impacto das atividades humanas, mostrando-se um campo aberto e interdisciplinar que dialoga com áreas como a geografia histórica. A autora conclui que a história ambiental latino-americana oferece um campo em desenvolvimento nos estudos das relações entre sociedade e natureza, preservando seu caráter exploratório e atraindo pesquisadores de diversas disciplinas, como história agrária e história intelectual.

Na segunda parte do artigo, El encuentro del nuevo y del viejo mundo, Lise Sedrez aborda o impacto da natureza do Novo Mundo sobre o pensamento europeu e as consequências ambientais do encontro entre os mundos europeu e americano, discutindo o desenvolvimento da história ambiental como disciplina. As primeiras análises desse impacto datam da década de 1930, com Antonio Gerbi, mas foi o clássico trabalho de Alfred Crosby, The Columbian Exchange, que introduziu questões inovadoras sobre as trocas biológicas e culturais após a chegada dos europeus às Américas. Crosby e Elinor Melville, com seu estudo Plague of Sheep, exploraram as transformações ambientais resultantes desse encontro, enfatizando tanto as intenções dos colonizadores quanto os efeitos não previstos, como a devastação de paisagens pelo pastoreio de ruminantes europeus.

Enquanto Crosby abrange o continente de maneira geral, Melville foca em uma perspectiva regional, mas ambos não ignoram as complexas relações de poder entre europeus e populações locais. Outros estudos, como o de Nancy Farris sobre a reorganização do sistema ambiental pelos maias no século XVI, e as pesquisas de Brailovsky e Foguelman sobre a Argentina e o Chile, avançaram nas análises de impactos ambientais regionais, embora ainda haja lacunas, especialmente em áreas como os Andes.

Além disso, a história ambiental se beneficia das contribuições da história da ciência, com estudos sobre os naturalistas europeus como Von Martius, Humboldt e Darwin, que influenciaram a percepção europeia da natureza americana. Pesquisadores como Cañizares Esguerra e Richard Grove destacam como o Novo Mundo foi fundamental para o desenvolvimento da ciência ocidental e das ideias conservacionistas. Apesar disso, a produção sobre naturalistas latino-americanos é escassa, mesmo com a abundância de fontes, como os relatos de jesuítas sobre a natureza do Novo Mundo, que ainda aguardam análise sob a perspectiva da história ambiental.

Na terceira parte do artigo, Medio ambiente y frontera Lise Sedrez explora a relação entre meio ambiente e fronteira na América Latina, com foco nos estudos sobre o desmatamento das florestas tropicais, especialmente a Amazônia. Na década de 1980, a preocupação com a degradação dos ecossistemas florestais estimulou pesquisas pioneiras como as de Warren Dean, que investigou a destruição da Mata Atlântica e o impacto da extração de borracha no Brasil. As fronteiras também representam locais de conflito entre colonos e povos indígenas, embora a historiografia tenha se concentrado mais em confrontos documentados do que em estudos colaborativos com a antropologia. A inclusão de comunidades como quilombolas e seringueiros poderia expandir a compreensão das dinâmicas de fronteira, oferecendo novas perspectivas sobre etnicidade e meio ambiente, tema ainda subexplorado na América Latina.

Outro tema relevante é a relação entre políticas agrárias e direitos de propriedade, área normalmente estudada por economistas. Modelos universais de propriedade podem obscurecer as particularidades ambientais regionais, como os solos pobres da Amazônia e os vales férteis do Chile, que geram formas distintas de organização agrária. A história ambiental, ao destacar as especificidades dos recursos naturais e sua integração ao ambiente, contribui para debates sobre propriedade e desenvolvimento econômico, como demonstrado por Shawn Miller. Segundo Miller, a posse da terra durante o período colonial não incluía necessariamente o controle sobre recursos valiosos como madeiras e minerais, que pertenciam à Coroa, incentivando a exploração predatória.

O impacto ambiental da mineração, especialmente no Brasil, é outra fronteira ainda pouco investigada. Embora haja estudos sobre a exploração de ouro e diamantes durante o período colonial, as consequências ambientais dessas atividades, como a contaminação por mercúrio e os conflitos por água, permanecem subexploradas. A análise das tecnologias de mineração e seus efeitos em diferentes regiões é crucial para preencher essas lacunas historiográficas e aprofundar a compreensão das transformações ambientais nas áreas de fronteira.

Na última parte do texto Historia del ambientalismo, a autora aborda a história do movimento ambientalista na América Latina, ressaltando uma colaboração frutífera, mas irregular, entre historiadores, cientistas sociais e antropólogos. Muitos autores são também ativistas, o que, embora facilite o acesso a documentos e testemunhos valiosos, pode levar a uma visão simplista do movimento. Essa visão muitas vezes segue um enredo previsível: de uma natureza prístina e intocada para um desastre causado pela colonização ou industrialização, até chegar à esperança de redenção pelo ambientalismo. Os melhores textos evitam essa narrativa e exploram os conflitos, as contradições e as interações entre ambientalistas, governos e outros movimentos sociais, além de discutir as redes de ONGs e a relação entre contextos locais e internacionais.

Há uma crescente produção de trabalhos focados em experiências nacionais, mas ainda faltam estudos sobre questões ambientais transfronteiriças ou que explorem bioregionalismo. O livro de Guillermo Castro, que trata das interações entre natureza e sociedade na América Latina, é uma exceção notável ao tratar dessas interconexões. Ainda há grandes lacunas, especialmente no que diz respeito ao manejo de recursos hídricos e ambientes costeiros, temas praticamente ignorados pelos historiadores ambientais.

A poluição e a industrialização, apesar de serem áreas com forte impacto ambiental, também recebem pouca atenção dos historiadores. As questões urbanas, ainda que fundamentais considerando que 80% da população latino-americana vive em cidades, são outro campo subexplorado na história ambiental, embora geógrafos históricos tenham começado a abordar o tema. As interseções entre ambiente e questões de gênero, classe e etnia também carecem de maior desenvolvimento.

A produção teórica sobre história ambiental na América Latina é limitada, embora trabalhos como os de Alberto G. Flórez Malagón e Germán Palacio, que buscam definir a disciplina a partir de uma perspectiva latino-americana, sejam esforços bem-vindos. O otimismo de Warren Dean, que vislumbrava o uso de dados ambientais coletados por cientistas por historiadores, ainda não se concretizou plenamente, mas há potencial para avanços significativos. Apesar do progresso recente, a história ambiental latino-americana ainda tem muito a desenvolver, precisando encontrar seus próprios temas e definições, além de fortalecer suas bases acadêmicas e editoriais para consolidar-se como um campo de pesquisa robusto.

Em conclusão, a obra de Lize Sedrez, “Historia ambiental de América Latina: origen, principales interrogantes y lagunas”, se revela uma contribuição importante para a construção de um entendimento mais profundo das sobre os estudos das interações entre sociedade e meio ambiente na América Latina. A autora não apenas elenca os desafios enfrentados pelos historiadores na pesquisa sobre história ambiental, mas também propõe um diálogo enriquecedor entre disciplinas, ampliando as possibilidades interpretativas do campo. Ao abordar questões como fronteiras, impacto ambiental e a trajetória do movimento ambientalista, Sedrez instiga uma reflexão crítica e convida novos pesquisadores a explorar as complexidades dessa inter-relação. Sua análise serve como um chamado à ação para a integração de abordagens interdisciplinares e à identificação de lacunas ainda existentes na historiografia, consolidando a História Ambiental como uma área essencial para a compreensão das dinâmicas sociais e ecológicas contemporâneas.

Referência: 

SEDREZ, Lise. Historia Ambiental de América Latina: orígenes, principales interrogantes e lacunas. In: Germán Palacio; Astrid Ulloa. (Org.). Repensando la naturaleza: encuentros y desencuentros disciplinarios en torno a lo ambiental. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia/Instituto Amazónico de Investigaciones Imani/Instituto Colciencia, p. 99-112, 2002.

domingo, 6 de outubro de 2024

Como fazer História Ambiental no entorno de Unidades de Conservação? Um relato sobre as experiências no entorno do Parque Nacional da Serra do Itajaí

Hoje vamos conversar sobre como realizar pesquisas de História Ambiental em áreas de Unidades de Conservação, utilizando como base as técnicas da História Oral como uma ferramenta poderosa para resgatar memórias e reconstruir as relações entre da sociedade no ambiente.

Como sabemos, História Ambiental é um campo que busca compreender a interdependência entre os seres humanos e a natureza ao longo do tempo. A ideia é perceber como a sociedade influencia o ambiente e como o ambiente, por sua vez, influencia a sociedade. É uma forma de olhar para a história considerando a dimensão ambiental no desenvolvimento humano. E isso não envolve só as grandes mudanças globais, mas também o impacto local, nas comunidades que vivem e dependem diretamente dos recursos naturais. Agora, imagine aplicar esse tipo de pesquisa em Unidades de Conservação, como parques nacionais e reservas naturais. Esses locais, que hoje têm a função de proteger o meio ambiente, nem sempre foram vistos assim. Muitas vezes, antes da criação dessas áreas protegidas, comunidades inteiras já viviam lá, e suas histórias de interação com a natureza são fundamentais para entender como a paisagem mudou ao longo do tempo, e da mesma forma a importância que essas áreas possem com serviços ecossistêmicos para a manutenção da vida humana.

Queremos, com este texto, compartilhar os procedimentos metodológicos que utilizamos para realizar um estudo de História Ambiental com o uso da Memória Ambiental e o envolvimento de populações do entorno de uma Unidade de Conservação. Baseamo-nos nos métodos aplicados no estudo que discutimos na postagem anterior (clique aqui ara ver), e pretendemos aqui apresentar um pequeno guia ou manual, mas no formato de uma conversa, de um relato de experiência. É algo simples na sua execução, mas que gerou resultados significativos para compreender a história local. A ideia é que, com este relato, você possa utilizá-lo nas suas próprias pesquisas de História Ambiental com comunidades no entorno de Unidades de Conservação, adaptando conforme suas necessidades.

Como nas pesquisas documentais pouco encontramos sobre o desenvolvimento das comunidades que entornam a UC, percebemos que para nosso caso, o método mais eficiente para captar histórias e memórias sobre o desenvolvimento e a interação das comunidades com o meio ambiente foi através de entrevistas, e nelas imitamos algumas técnicas do método da História Oral. Existem muitas formas praticadas desde a antropologia até mesmo pelos historiadores. Há uma Associação Brasileira de História Oral, com eventos e norteando o paradigma dessa área. Conforme fomos aplicando as práticas, fomos constatando e adaptando a forma de fazer, desde a organização do ato da entrevista, dos procedimento legais, e a organização da fonte histórica após a entrevista, no seu processo de transcrição e tradução e retorno com o entrevistado. 

As entrevistas que realizamos mostram memórias pessoais e coletivas, que ajudam a documentar experiências que, muitas vezes, não estão registradas em fontes escritas ou oficiais. A prática da História Oral no campo de pesquisa de História Ambiental permite resgatar histórias de vida, práticas culturais, percepções sobre o meio ambiente e mudanças na paisagem ao longo do tempo. É uma ferramenta poderosa para compreender como as comunidades locais interagiram com o ambiente, como ele foi transformado e quais as consequências dessas transformações. 

Neste texto vamos explorar como realizar uma pesquisa de História Ambiental em espaços geográficos como os territórios de UCs, mostrando a partir de nossas experiências alguns procedimentos que podem ajudar os colegas a desenvolverem seus estudos, ou se aventurarem como nós! Discutiremos desde a preparação e condução das entrevistas, até a análise das memórias coletadas, proporcionando uma visão clara de como este método pode ser aplicado para entender a relação entre sociedade e natureza ao longo do tempo.

Para começar, é fundamental delimitar a área de estudo. Vamos supor que você está interessado em pesquisar um lugar como o Parque Nacional da Serra do Itajaí, em Santa Catarina, que foi o que fizemos. Este parque é uma área imensa, com cerca de 57 mil hectares, que abrange diversos municípios, como Apiúna, Botuverá e Blumenau etc. Então, dependendo do tamanho do território da UC, a primeira coisa a fazer é definir qual porção dessa área ou quais comunidades do entorno você vai investigar.
Além disso, antes de ir a campo, é essencial realizar uma revisão da literatura. Isso significa ler tudo o que já foi produzido sobre o local, como estudos prévios, planos de manejo, ou até mesmo documentos históricos. Esse passo é importante porque ajuda a identificar o que já foi dito sobre a região e quais lacunas ainda precisam ser preenchidas. É nesse momento que você começa a formular as perguntas que vai levar para o campo, e ajudarão no processo de entrevista. Muitas destas perguntas criamos a partir do que constatamos com a literatura e conforme as três dimensões de Donald Worster (Para saber sobre isso clique aqui!).

Outra coisa importante, principalmente em pesquisa (acadêmicas, ou prestando serviços a terceiros ou órgãos públicos), é formar uma equipe interdisciplinar. Pesquisas de História Ambiental costumam envolver várias áreas do conhecimento. Então, além de historiadores, pode ser muito útil ter biólogos, geógrafos, sociólogos e antropólogos trabalhando juntos. Essa diversidade de olhares vai enriquecer o estudo, garantindo que você consiga entender as múltiplas dimensões das interações entre sociedade e natureza. 

No caso de nossas experiências no GPHAVI buscamos associar Ecologia (pesquisadora Vanessa), Geografia (pesquisador Gilberto), História (eu, pesquisador Martin). Mas quando isso não é possível, é importante um olhar interdisciplinar. O conhecimento prévio sobre alguns temas ajudam, e o historiador deve adquirir o hábito de realizar leituras, e se habituar a conceitos e termos das ciências naturais, pois precisará disso para entender os quadros naturais e suas relações com o desenvolvimento humano, sendo o desenvolvimento humano a história em produto, como na segunda dimensão de Donald Worster.

Após definir o espaço e conhecer o espaço no gabinete de pesquisa, está na hora de planejar as atividades de campo. O campo é fundamental nas pesquisas de História Ambiental de Unidades de Conservação. Existem inúmeras ferramentas web para gerar mapas para traçar o campo, e conhecer as localidades que serão estudadas. Nesta ocasião do primeiro campo conhecer o local também remete em abordar os moradores, para saber quem são os moradores que vivem a mais tempo no local, e começar a identificar sujeitos históricos do local, e com isso começar a pensar em identificar os entrevistados. Como estamos falando de História Ambiental, é importante encontrar as pessoas mais antigas das comunidades, aquelas que vivenciaram as mudanças mais marcantes na paisagem. Para localizar essas pessoas, uma boa prática é usar a técnica de “rede”. Funciona assim: você entrevista alguém e, no final da conversa, pergunta se ele ou ela pode indicar mais pessoas para serem entrevistadas. Aos poucos, vai se formando uma rede de entrevistados, que geralmente compartilham memórias valiosas sobre o passado da região. Outras técnicas mais ousadas incluem identificar entrevistados com visitas a festas locais, eventos religiosos, bares e pontos de encontros para começar a interação e pensar a rede de entrevistas.

Depois de identificar os entrevistados, é hora de conduzir as entrevistas. O ideal é que essas entrevistas sejam abertas, permitindo que as pessoas contem suas histórias com liberdade e sem muitas interrupções. No entanto, é importante seguir um roteiro para orientar o processo. No nosso caso, baseámo-nos nas dimensões propostas por Donald Worster, mas você pode ampliar seu conjunto de perguntas. Ressaltamos que, em alguns casos, as respostas surgem de forma automática, e certas perguntas podem não ser adequadas naquele momento. De qualquer forma, aqui estão alguns temas importantes que você pode abordar:

  • História de Vida: Comece pedindo para o entrevistado contar sobre sua vida, de onde ele veio, como era sua infância, como a comunidade foi mudando ao longo do tempo.
  • História do Ambiente e da Comunidade: Pergunte sobre a história local, quem eram os primeiros habitantes (se falarem de indígenas amplie esses questionamentos) como as pessoas se instalaram ali, por que vieram, os motivos. Pergunte sobre quantidade de famílias, as mais antigas do local, procure saber os momentos de fluxo de mudanças de demografia, e os motivos ao longo do tempo da comunidade. Também aproveite para saber de lendas locais podem aparecer reações com a natureza, pergunte sobre as atividades cotidianas da vida e como ela foi se modificando buscando entender os fatores. Aproveite para questionar sobre informações do passado da paisagem antigamente, quais animais e tipos de árvores existiam e hoje não mais, e quais mudanças ocorreram no ambiente.
  • A exploração do ambiente e práticas agropecuárias: Questione sobre a exploração da floresta, se haviam empresas, e como era feita a exoração, as técnicas e tecnologias, assim como quais eram as principais espécies e de que forma a exploração modificou a paisagem. Questione sobre os usos dados a exploração da floresta, os usos da madeira e outras coisas que venham a surgir na conversa. Tente saber se existiam outras atividades extrativistas, e busque conhecer suas histórias. É importante saber como a floresta foi usada ao longo do tempo. Pergunte sobre as árvores cortadas, o uso da madeira e a comercialização de recursos naturais, como o palmito e o xaxim. Questione sobre as práticas agrícolas da comunidade. Quais eram as áreas escolhidas, e por que faziam as escolhas dos locais, como era o desmatamento, o que se fazia com a madeira retirada, havia exploração de carvão, comercio de lenha. Questione o tipo de cultivo era feito, as técnicas e tecnologias utilizadas, e como elas mudaram com o tempo. Interrogue sobre o impacto dessas práticas no meio ambiente. Pergunte sobre a criação de animais, como é a forma que era realizada e modificou com o tempo. Sobre modificações, doenças, pragas etc.
  • Caça e Pesca: É importante perguntar sobre a relação com a fauna local. Como as pessoas comiam carne antigamente, para conhecer as histórias de caça, e os animais caçados ou pescados, e como isso mudou ao longo do tempo. Da mesma forma inter-relacione com as modificações da paisagem, como a quantidade de água dos rios.
  • Percepção sobre a Unidade de Conservação: Por fim, questione sobre a criação do parque ou da reserva e como isso afetou a vida da comunidade. Houve resistência? A área protegida trouxe mudanças no cotidiano ou nas práticas econômicas? Pergunte o que mudou, e tente retirar da percepção dos entrevistas se com a UC houve melhorias nas condições de vida da população humana, assim como resiliência da floresta, até mesmo mudanças de hábitos, como diminuição da caça, ou do corte da floresta.
No levantamento de informações no campo é essencial documentar tudo. Grave as entrevistas, tire fotos, faça anotações para lembrar dos fatos. Lembre-se sempre de pedir autorização dos entrevistados para gravar as conversas e usar as informações em seu estudo com temos de consentimento e uso de imagem e vídeo. Caso a pesquisa seja institucional, feita por uma Iniciação Científica, ou vinculada a alguma instituição é fundamental regular a entrevista no Comitê de Ética da instituição, que dará as informações de como proceder para legalizar o processo de pesquisa científica com humanos.

As memórias coletadas são como fragmentos de um quebra-cabeça. Cada pessoa traz sua perspectiva única sobre a relação com a natureza, e é a soma dessas narrativas que vai te ajudar a compreender como a paisagem foi moldada ao longo do tempo. Além disso, a abordagem da História Oral permite captar também o lado simbólico da interação com a natureza, algo que documentos escritos nem sempre conseguem registrar e se enquadram na terceira dimensão de Donald Worster.

Uma importante dica para observar durante o processo de estabelecimento da rede de entrevistas e seus procedimentos. Um dos pontos mais interessantes da História Oral é o conceito de memória coletiva. Ou seja, ao cruzar as informações de várias entrevistas, você começa a perceber padrões, elementos comuns que mostram como a comunidade, como um todo, vivenciou determinadas mudanças ambientais. Depois de uma entrevista bora transcrever, não espere, a sua memória de coletar a entrevista e de transcrever poderá te trazer informações importantes para responder os objetivos da pesquisa. Nesse processo, você também vai identificar as vantagens e limitações da História Oral. Por um lado, ela permite resgatar informações que muitas vezes não estão em nenhum documento oficial. Por outro, as memórias podem ser subjetivas e variar de pessoa para pessoa, o que exige uma análise cuidadosa. E a constante análise das entrevistas, com a identificação de memória coletiva favorece ao pesquisador focar-se nos pontos fundamentais e não se deixar enganar. Outro ponto importante é conectar as memórias coletadas com o contexto histórico mais amplo. Isso significa colocar as experiências individuais dentro do panorama das transformações ambientais da região, como o desmatamento, a criação da UC e as políticas de preservação. E caso surjam fotos, notícias de jornais, explore elas e a relação histórica.

Vamos analisar alguns exemplos de relatos coletados:

“Eles vieram por conta própria. Aí vieram uma família com três, quatro filhos, ou já casado irmãos né, então já vieram e já colocaram ali né. Então o Gianesini veio aqui e Tamazia lá. Eles vieram pelo rio de Itajaí, sempre pelo rio, pelo rio Itajaí Mirim. [...] Entravam em acordo, o outro era cunhado ou parente né, então eles diziam: “tu pega daqui pra cá, que eu pego daqui pra lá.” E já botavam um marquinho ali e coisa e pronto. Eles mesmos não foram, não foram nada medidos pro agrimensor nem nada, depois mais adiante talvez, nem essas terras aqui nunca colocamos agrimensor, como foi do avô, de pai para filho, sempre foi respeitado esses marcos ali, como os velhos antigamente. [...]Então a gente sempre desbravou aqui né, e viveu aqui né, com o fumo e tudo.” (GIANESINI,I. 2008: 2)

Nessa passagem é possível perceber a ênfase na admiração de fazer parte de uma família que ao “desbravar” a região construiu sua vida, ao mesmo tempo em que construiu a história da comunidade. Esse tipo de relato possibilita a compreensão de elementos fundamentais para o desenvolvimento da comunidade como a divisão dos lotes nas áreas de várzeas e próximas ao rio, e próximas umas as outras, que distribuídos dessa forma facilitavam o acesso a água, ao transporte através das picadas e também facilitava a troca de produtos e serviços entre os vizinhos. O relato também demonstra a importância do fumo para as comunidades, aparecendo no relato como uma característica importante na forma de vida da família. 

Outro relato expõe as dificuldades enfrentadas nas comunidades com o plantio dessa modalidade de agricultura, o fumo. Também se torna visível como o entendimento das técnicas de plantio possibilitaram a padronização e o sucesso do cultivo:

“Antigamente jogava (as sementes) na terra, mas hoje não. A gente fazia um canteiro bem caprichado, bem esterilizados para não sair capim se não matava a semente, mas hoje não, hoje já é feito tudo em sementeira com bandeja dentro da água. [...] E depois na terra, ali tinha os canteiros né, vinham às mudinhas, aí depois a gente começava a arrumar a terra, ali era virado com o cavalo, arado de cavalo, depois gradeada com os cavalos, depois fazia os carreiros, botava adubo, semeava o adubo, depois fazia o carreiro tampado, fazia assim as covas né, mas bem retinhas, depois a gente tinha que cultivar né, e depois a gente ia plantando, a gente ia plantando, plantando a mudinha. E depois quando era para cultivar a gente cultivava, botava adubo de novo, botava salitre de novo para ele poder vir. [...] Colhia, amarrava. Tudo a mão. [...] A gente colocava aqui, apanhava e colocava aqui, quando tinha o braçado botava na zorra, ali no outro carreiro tinha a zorra com o cavalo que passava ali a gente colocava na zorra, depois carregava para casa. Depois carregava a zorra para casa, colocava a zorra de debaixo da estufa e todo sujo, todo melado, molhado do sereno, porque a gente ia bem cedo, por causa que depois vinha o sol onde era ruim, colocava debaixo da estufa, ali nós tinha os cavalete com as varas, botava as varas em cima, um dando na mão duas folhas, duas em duas e amarrava, e botava nos estaleiros, os estaleiros, sabe como é o estaleiros. Ali quando terminava que tinha trezentas, quatrocentas varas de fumo aí então colocava na estufa, ali depois acendia o fogo para amarelá-la e depois três ou quatro dias” (FACHINI, 2008, p. 3-4).

A percepção dos entrevistados sobre a natureza e a preocupação com os usos e a conservação pode ser percebida nos relatos a seguir:

“Aqui eu me cansei de ver a anta, e aqueles veados [...] a anta é sempre o casal. E depois tinham aqueles veados, aqueles veados de mato, então eles vinham pela água afora né, vinham pela água afora e vinha e batia na lagoa, aí estava lá o veado com aqueles galhões, eles iam lá, o que deixavam ir embora, se não eles iam lá com uma faca ou com um machado e matava ele lá na beiradinha do rio. [...]Todo mundo tinha (caça). Ali eles maneiravam, eles maneiravam para ter, para não exagerar. Tinha Jacopemba, jacu, jacu, macuco. Caçava só no inverno. Porque agora, agora para a frente, todo o passarinho, todo o passarinho está botando ovo, chocando, botando ovo... até abril, maio. [...]Sim só que tem cuidar também né. Se por acaso é dedado, no caso é dedado, vai lá a Polícia Ambiental ele tem direito a ir no freezer, vai no freezer se estiver um tatu, uma carne de veado ou paca ou cotia. Fiança não tem, é gaiola e tem que responder processo a vida toda, tem gente aqui que tem dar um sacolão para uma instituição todo mês, se não quer ficar na gaiola. Sim e pagou três, quatro mil de fiança, até mais”
 (GIANESINI, 2008, p. 10).

Sobre a pesca e os rios este relato evidenciam muitas informações:

“Tinha (muitos peixes) é porque sumiu muito peixe do rio. Era o cascudo, era só o cascudo que tinha no rio, só o cascudo e depois tinha outros peixes, mas o cascudo é o melhor né. Hoje em dia ninguém mais pesca está muito poluído. [...] Tinha mais (água) sim. Se desse uma chuva como deu na semana passada o rio estava nas praias hoje. Porque a gente passava no rio de carroça, mas não era sempre que dava para passar, hoje ficam anos e anos, se tivesse que passar ainda” (FACHINI, 2008:7).


Depois de coletar e analisar as entrevistas (áudio e transcrição), além das demais fontes rpimárias e secundárias sobre o território, você vai estar pronto para construir a História Ambiental da região estudada. A pesquisa não vai apenas trazer à tona como a paisagem foi transformada, mas também ajudar a entender como as interações entre sociedade e natureza moldaram a vida local.

E mais do que isso, esse tipo de estudo pode oferecer contribuições práticas para a gestão das UCs. Por exemplo, os órgãos responsáveis pela administração de parques e reservas podem usar as informações para desenvolver políticas mais alinhadas às realidades das comunidades locais. Isso pode incluir desde o envolvimento da comunidade em ações de preservação até o reconhecimento de práticas tradicionais que podem ser adaptadas para proteger o meio ambiente.

Um exemplo interessante de estudo, no qual fundamentamos este texto, e tratamos também na opstagem anterior, é o caso das nossas experiências de pesquisa no Parque Nacional da Serra do Itajaí entre 2004 e 2009. Com o GPHAVI (Grupo de Pesquisas de História Ambiental do Vale do Itajaí) realizamos várias pesquisas usando a História Oral com as comunidades do entorno do parque. Foram entrevistados moradores antigos das 9 cidades em que o parque possui território. A partir dessas entrevistas, conseguimos entender como a floresta foi usada ao longo dos anos, desde a extração de madeira até a criação de gado, exploração mineral, e muito mais. As entrevistas revelaram um rico acervo de memórias sobre a vida na Floresta Atlântica antes da criação do parque, e mostraram como a conservação pode impactar essas comunidades.

Então, para quem deseja estudar a História Ambiental em áreas de conservação, o uso da História Oral é uma ferramenta poderosa. Ela não só resgata memórias que muitas vezes são esquecidas, mas também oferece um entendimento mais profundo das relações entre a sociedade e o meio ambiente. É um método que nos ajuda a preencher lacunas da historiografia e, ao mesmo tempo, valoriza as experiências e o conhecimento das comunidades locais.

Se você está planejando esse tipo de pesquisa, espero que este texto guia tenha sido útil para dar os primeiros passos!

sábado, 5 de outubro de 2024

Memórias da Serra do Itajaí: um estudo sobre memória ambiental no entorno de uma Unidade de Conservação


Estamos a divulgar este estudo, realizado após diversas experiências de pesquisa em História Ambiental, com base na memória ambiental. O estudo foi apresentado no IV Congresso Internacional de História, realizado em Maringá, em 2009. De autoria de Martin, Gilberto e Ana Claudia Moser, o estudo intitulado "O uso da História Oral na Construção da História Ambiental das Comunidades do Entorno do Parque Nacional da Serra do Itajaí, em Botuverá, SC".

Gostaríamos de expressar nosso agradecimento ao PIBIC/CNPq, que concedeu a bolsa para o desenvolvimento da pesquisa com a estudante Ana, assim como pelos recursos que permitiram a apresentação do trabalho no congresso. Também queremos agradecer à FAPESC pelos recursos disponibilizados, que foram essenciais para a aquisição de equipamentos para o laboratório. Neste momento da história do GPHAVI (em 2009 e até hoje), esse apoio foi fundamental. Da mesma forma o agradecimento a Ana, que com rigor desenvolveu muito bem esta pesquisa de IC. E agradecemos aos motoristas da FURB que com os veículos da instituição nos levaram aos mais longínquos lugares na serra do Itajaí.

O texto original, publicado nos anais do evento, pode ser acessado [clicando aqui]. A seguir, apresentamos uma síntese.

O texto trata sobre um território protegido pelo Parque Nacional da Serra do Itajaí (PNSI),  criado em junho de 2004, com uma área de 57.374 hectares, assim como trata do seu papel na preservação da Floresta Atlântica e sua biodiversidade.  O parque abrange 9 municípios de Santa Catarina, incluindo Apiúna, Ascurra, Botuverá, Blumenau e outros. Antes da criação do PNSI, comunidades humanas já ocupavam a região, e sua interação com a floresta foi marcada principalmente pela exploração e destruição dos recursos naturais.

O estudo apresenta que, com a chegada dos colonos europeus no século XIX, ocorreram alterações profundas na paisagem da Serra do Itajaí, uma vez que estes novos moradores passaram a encarar a floresta como um obstáculo a ser dominado para o desenvolvimento de uma civilização moldada pelos padrões europeus. Os colonizadores, provenientes de países como Alemanha, Itália, Rússia e Polônia, ocuparam a floresta de maneira irracional, derrubando-a para dar lugar a moradias, campos agrícolas e pastagens. O impacto ambiental foi severo, com ecossistemas destruídos à medida que o território foi sendo colonizado.

O texto menciona um levantamento realizado pela ACAPRENA (Associação Catarinense de Preservação da Natureza, momento pré Plano de Manejo da UC), que identificou mais de 30 comunidades no entorno do PNSI, algumas das quais entornam e adentram na área do parque criado. Antes disso, estas comunidades em sua interação e interdependência ambiental contribuíram para a criação de estágios variados de sucessão ecológica, desde áreas com capoeirinha até matas secundárias com elevado índice de regeneração. A presença humana e o processo de colonização ameaçam as relações ecológicas da floresta.

O Grupo de Pesquisas de História Ambiental do Vale do Itajaí (GPHAVI) desenvolveu pesquisas para documentar a História Ambiental das comunidades que rodeiam o PNSI, utilizando a História Oral como metodologia central. Entre 2004 e 2009, o grupo realizou pesquisas em municípios como Apiúna, Blumenau, Botuverá, Gaspar e Indaial, coletando a memória dos antigos moradores sobre suas relações com a natureza. A história oral permitiu o resgate de memórias valiosas sobre como a floresta foi sendo transformada ao longo do tempo, e como a biodiversidade se tornou um recurso essencial para a sobrevivência das comunidades.

As entrevistas realizadas com 30 moradores, com média etária de 75 anos, das comunidades em Botuverá (Salto de Águas, Beira Rio, Lageado Central, Lageado Baixo, Lageado Alto, Ribeirão do Ouro, Areias Alta e Areias Baixa) As entrevistas proporcionaram uma memória coletiva rica em detalhes sobre os usos da floresta, desde a caça e pesca até a agricultura e extração de madeira, ouro, cal e calcário. Os relatos demonstraram como a natureza foi sendo progressivamente humanizada, adaptada para atender às necessidades de sobrevivência e desenvolvimento das comunidades.

Fornos de Cal - GPHAVI

Além disso, o texto discute as vantagens e limitações da História Oral como metodologia para a pesquisa em História Ambiental. Embora existam desafios, como a subjetividade e a necessidade de estar atento às reconstruções narrativas, o método permite o resgate de informações não documentadas, preenchendo lacunas na historiografia e oferecendo uma visão mais completa da história das interações entre sociedade e natureza.

O uso da memória como fonte histórica permitiu ao GPHAVI reconstruir parte da história do passado ambiental da região, oferecendo um panorama detalhado sobre as transformações da paisagem, as práticas culturais associadas ao uso dos recursos naturais e as consequências ecológicas da exploração ao longo do tempo, contadas pelos próprios sujeitos constituintes da história local. A pesquisa evidencia a importância da história oral na construção de uma história ambiental rica e contextualizada, especialmente em regiões onde a historiografia tradicional é escassa e não tem como foco de objeto de estudo. Nestas regiões a memória é fundamental para a construção da História. E como as pessoas tem um ciclo rápido de existência, é de suma importância o interesse nas pessoas mais velhas pois nelas a memória ajuda a estabelecer quadros históricos do passado inexistentes em fontes documentais.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Ambiente, História, Desenvolvimento e onde as pessoas moravam?

No Vale do Itajaí, a natureza desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento regional, especialmente no contexto da colonização. Os colonos trouxeram conhecimentos e técnicas de construção de seus países de origem, mas logo perceberam que os recursos naturais europeus não eram compatíveis com a nova realidade. Os tipos de madeira, palha e argila disponíveis na Mata Atlântica apresentavam características muito diferentes, exigindo adaptações constantes e experimentação para que pudessem ser aproveitados de maneira eficiente.

Esse processo de adaptação não foi apenas uma questão prática, mas um verdadeiro aprendizado ambiental. Os colonos enfrentaram desafios na construção de suas moradias, já que a madeira europeia, conhecida por sua durabilidade e maleabilidade, não correspondia ao comportamento das espécies locais, mas logo foram identificadas espécies que serviam aos interesses. A palha utilizada na cobertura das casas na Europa não tinha o mesmo efeito de isolamento térmico e resistência na nova região. Assim, a sobrevivência e o conforto dependiam de uma compreensão mais profunda das características ecológicas da Mata Atlântica.

A história ambiental da colonização revela que o desenvolvimento econômico e social não ocorreu apenas através da exploração dos recursos naturais, mas também pela transformação do conhecimento e das técnicas de sobrevivência dos colonos. Cada nova descoberta, cada tipo de madeira que passava nos “testes de resistência” dos colonos, cada solo que se mostrava mais ou menos adequado para a agricultura, contribuía para a formação de um conhecimento ecológico local, integrado à paisagem cultural da comunidade.

Ao enfatizar a história ambiental, queremos destacar que o desenvolvimento das formas de habitação, das técnicas de cultivo e das estruturas sociais dos colonos foi moldado por uma interação contínua e complexa com o ambiente. O processo de domesticação e adaptação à Mata Atlântica não foi apenas uma imposição da cultura europeia sobre o território, mas também uma troca, onde os colonos aprenderam com o ambiente e, em resposta, transformaram suas práticas e conhecimentos.

O pesquisador e jornalista Zedar Perfeito Silva, cujo trabalho inspirou essa reflexão (veja a referência no final), descreve em detalhes como a história de Blumenau não pode ser compreendida sem considerar essa interdependência entre o ser humano e o ambiente natural. Sua análise demonstra que a trajetória da colonização foi profundamente influenciada por fatores ecológicos, e que a história de uma região é, em última instância, a história de como seus habitantes aprenderam a conviver e transformar a paisagem natural.

Com isso, buscamos nesta postagem ampliar o olhar para além dos aspectos econômicos, considerando também as práticas cotidianas de adaptação e as transformações culturais que surgiram da interação com o ambiente local. Afinal, a história da colonização é também a história das vivências e da construção de um modo de vida integrado ao Vale do Itajaí.

Para além das descrições de Zedar Perfeito Silva, nossa experiência em pesquisas e conversas com pessoas mais velhas revela detalhes adicionais sobre os recursos utilizados pelos colonos. Nos primeiros anos, árvores como imbaúbas eram exploradas de maneira semelhante aos palmitos, em função de sua abundância e facilidade de manejo. Com o passar do tempo, os colonos voltaram suas atenções para as gigantescas perobas, imbuías e canelas, que ofereciam madeira dura e resistente, ideal para construções duradouras e pouco suscetível ao ataque de pragas, entre elas cupins e formigas.


O desenho que vemos acima é uma reprodução da tela pintada por Kurt Guilherme Hermann, que retrata a chegada dos primeiros 17 imigrantes na então Colônia Blumenau. A imagem ilustra a chegada dos colonizadores. Destaca-se na imagem a floresta robusta, com diversas espécies, o que faz imaginar a abundância e qualidade da flora. No tronco da árvore atrás do barraco, epífitas e trepadeiras penduram-se na árvore. A casa construída próxima ao curso do rio também reforça uma interpretação de mata densa e de difícil penetração. Ao mesmo tempo, no local onde estão os humanos, vemos uma pessoa cortando lenha, e próximo a ela duas toras indicam que duas gigantescas árvores já estiveram ali. O barracão, a casa que vemos na imagem, observem como é feito com galhadas entrelaçadas, possui uma varanda, logo à frente há o fogo e ferramentas, e o telhado feito de palha, possivelmente de jerivás, palmitos ou folhas dos caetés.

    

No início da colonização, as construções eram extremamente rudimentares, refletindo tanto a precariedade dos materiais disponíveis quanto o isolamento em que viviam os colonos. As primeiras casas eram cobertas de palha e erguidas com madeira de árvores locais. O chão era de terra batida, e as paredes eram feitas de troncos e ripas de madeira amarrados com cipós. Essas moradias rústicas, além de apresentarem condições de habitabilidade muito precárias, utilizavam azeite de baleia e velas de sebo para iluminação, evidenciando a escassez de recursos e a necessidade de improvisação.

Com o tempo, à medida que o conhecimento sobre as características da flora local aumentava, os colonos passaram a selecionar melhor os materiais utilizados na construção. As perobas e imbuías, conhecidas por sua durabilidade e resistência, tornaram-se as preferidas para a construção de casas e estruturas mais complexas. Essa evolução nas técnicas construtivas não foi apenas uma adaptação prática, mas um processo de aprendizado profundo sobre o ambiente e suas potencialidades.


A evolução das construções foi, portanto, um reflexo direto do processo de adaptação ao novo meio ambiente. À medida que as técnicas de manejo e aproveitamento dos recursos locais se aprimoraram, as habitações passaram de estruturas improvisadas a edificações mais sólidas e funcionais, com telhados de telha e paredes de madeira bem tratada. Essa transformação demonstra como a interação entre os colonos e a natureza local resultou em um conhecimento ambiental que foi fundamental para a sobrevivência e desenvolvimento da comunidade.

Essas adaptações e a incorporação de materiais mais adequados evidenciam a capacidade de inovação dos colonos e a importância do conhecimento empírico transmitido entre gerações. A utilização de espécies arbóreas mais resistentes, que poderiam resistir às intempéries e ao ataque de pragas, revela não apenas uma busca por conforto e segurança, mas também uma estratégia de longo prazo para estabelecer uma infraestrutura sólida e duradoura.

Conforme a colônia prosperou e os recursos começaram a surgir, os colonos passaram a melhorar suas moradias. Ainda utilizando madeira como principal material de construção, as casas começaram a ser cobertas com telhas de madeira, e mais tarde surgiram construções mais elaboradas, como a casa de enxaimel. Esse estilo arquitetônico, muito popular no Vale do Itajaí, era caracterizado por uma estrutura de madeira com tijolos entre as vigas, onde o madeiramento era pintado de preto e as esquadrias em branco, criando um contraste visual.

O enxaimel, considerado uma contribuição dos pomeranos, se tornou uma marca registrada da região, mas sua construção tornou-se rara devido à dificuldade de obter o madeiramento específico. Outros estilos populares incluíam o bungalow de madeira, comum nos subúrbios de Blumenau, e o chalé de madeira, ambos introduzidos pelos colonos europeus e adaptados ao contexto local. Além disso, as casas mais sofisticadas, construídas a partir da década de 1950, começaram a incluir elementos da arquitetura europeia, como o telhado mansard (empinado), que lembrava as paisagens do velho continente. À medida que os colonos obtinham mais recursos, foi possível adicionar varandas, cozinhas separadas, galpões e jardins que se tornaram parte integral das residências.
Análise Histórico-Ambiental

A relação entre os colonos e a natureza no Vale do Itajaí foi marcada pela capacidade de adaptação e utilização inteligente dos recursos disponíveis. Inicialmente, a falta de materiais sofisticados levou à construção de moradias simples e funcionais, mas com o tempo, o desenvolvimento da região e a aquisição de técnicas construtivas mais refinadas permitiram a criação de um estilo arquitetônico que mesclava elementos europeus e adaptações locais.

Essa evolução reflete um processo contínuo de interação entre os colonos e o meio ambiente, onde a madeira, o barro e outros recursos naturais foram moldados para criar moradias que não só serviam como abrigo, mas também se integravam harmoniosamente à paisagem local.

Fonte:

SILVA, Zedar Perfeito. O Vale do Itajaí. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura - Serviço de Informação Agrícola. 1954

Guerra e meio ambiente: um ciclo de destruição

Fonte: Brasil de Fato


Os conflitos militares não trazem apenas perdas humanas e destruição social, mas também agravam a crise ambiental, contribuindo para a degradação do meio ambiente e intensificando as mudanças climáticas. O aumento recente dos conflitos na região de Israel e Líbano, por exemplo, tem sérias consequências para o ecossistema local e global.

Estudos indicam que atividades militares, como bombardeios e destruição de infraestrutura, geram emissões significativas de gases de efeito estufa, superando, em curtos períodos de tempo, as emissões de muitos países. A destruição de edifícios, o uso de armas pesadas e os esforços de reconstrução futura consomem enormes quantidades de energia e recursos, gerando um impacto ambiental duradouro.
Fonte: BBC
Além disso, os conflitos causam a degradação de ecossistemas naturais, como desmatamento, contaminação de água e solo, e a destruição de habitats. Áreas agrícolas e florestas, como no sul do Líbano, enfrentam graves riscos de longo prazo devido às operações militares. A fauna e a flora locais são forçadas a migrar ou perecer, e as comunidades humanas sofrem com a perda de terras férteis e a deterioração dos recursos naturais.

Regiões afetadas pela guerra, muitas das quais já vulneráveis às mudanças climáticas, como a escassez de água, enfrentam desafios ainda maiores. A degradação ambiental e social, combinada com a destruição da infraestrutura, compromete a capacidade dessas áreas de se recuperar, levando a migrações forçadas e instabilidade socioambiental.

O impacto desses conflitos militares vai além da destruição imediata: eles comprometem o futuro ambiental e humano da região, agravando as crises ecológicas e dificultando a adaptação às mudanças climáticas. A interdependência entre guerra e meio ambiente demonstra como ações humanas em tempos de conflito geram consequências duradouras para as sociedades e ecossistemas.

Fontes:

 Wikipedia: 2024 Israeli invasion of Lebanon

 Queen Mary University of London: New study reveals substantial carbon emissions from the ongoing Israel-Gaza conflict