"Eu sou o que me cerca. Se eu não preservar o que me cerca, eu não me preservo".
José Ortega y Gasset

sábado, 26 de outubro de 2024

Apontamentos sobre a pesca no litoral do Vale do Itajaí em 1950

Nos registros de 1950 sobre a vida rural no Vale do Itajaí, p. 71-74 de Zedar Perfeito Silva, diversas informações apresentam um panorama para entender a história da pesca no vale, principalmente no litoral. Ele aponta que o município de Itajaí, localizado na foz do grande rio que dá nome ao vale, se destacava por sua vocação pesqueira, com atividades distribuídas pelas praias, enseadas e rios da região. Ele aponta que pesca em toda bacia hidrográfica era historicamente relevante, com a captura de peixes e mariscos contribuindo tanto para a economia local quanto para o sustento das comunidades ribeirinhas. Em estudo que realizei em meu mestrado, pesquisei a história da pesca no Rio Itajaí na região de Blumenau, apontando principalmente  a tradição de cultivo de peixes em lagoas, e a formação de uma rede sociotécnica da piscicultura no Vale do Itajaí (clique aqui para ver). A pesca em água doce era praticada principalmente para subsistência dos moradores dispersos nos diversos vales no pé da Serra do Itajaí, seja pelo curso do Rio Itajaí, e pelo Itajaí Mirim. 

Segundo Zedar Perfeito Silva, um marco importante da história da pesca no baixo vale foi a Armação de Itapocorói, hoje Penha, criada em 1777 para a exploração de cetáceos e produção de azeite de baleia. Essa atividade desencadeou a necessidade de expandir a exploração tanto dos recursos marítimos quanto das florestas no entorno para suas demandas. As instalações da Armação de Itapocorói eram complexas e incluíam residências para os administradores, capelas, alojamentos para trabalhadores e escravos, trapiches e engenhos para processar a gordura das baleias. Essas estruturas demandavam grande quantidade de madeira para construção naval e atividade pesqueira. A extração de madeira nativa das florestas da região foi essencial para erguer os edifícios e fabricar os barcos necessários para a pesca. 

Geralmente os barcos de pequeno e médio porte, como baleeiras e canoas, eram esculpidos de troncos inteiros ou montados a partir de pranchas de madeira, utilizando espécies típicas da Mata Atlântica, como: Canela, usada em detalhes de acabamento e em elementos estruturais, por sua resistência ao apodrecimento. Guapuruvu, uma madeira leve e fácil de trabalhar, ideal para a construção de canoas e pequenos barcos. A Peroba e o Cedro eram madeiras duráveis e resistentes à umidade, usadas para a construção das embarcações e do trapiche. Também se usava a Figueira com uma madeira mais flexível, adequada para a produção de remos e outras peças móveis. Para saber mais sobre isso visite o estudo de João Carlos Ferreira de Melo Júnior e Cláudia Franca Barros, Madeiras históricas na carpintaria naval de canoas baleeiras da costa catarinense (disponível clicando aqui)

Além das embarcações, era com a madeira que se faziam equipamentos auxiliares, como carretéis e suportes para a torção de fios de algodão, empregados na confecção de redes. As boias de cortiça ou madeira leve, como a taquara, eram usadas para manter as redes na superfície. A pesca artesanal dessa época exigia reparos frequentes nos barcos e apetrechos, e oficinas improvisadas nas praias e enseadas garantiam essa manutenção. Por sua vez, o trapiche, onde as baleias arpoadas eram desembarcadas, era construído com grossas vigas de peroba e guapuruvu, resistentes ao desgaste da água salgada.  A madeira também era empregada para alimentar as caldeiras e fogões nos engenhos, onde a gordura das baleias era derretida e transformada em azeite, intensificando o uso dos recursos florestais. Nessa época o escravo era utilizado na industrialização do óleo, enquanto o processo de extração e produção acontecia em um engenho específico. A baleia arpoada era transportada até o trapiche, onde sua gordura era retirada e processada para azeite. 

A pesca de baleias se estendia entre junho e agosto, mas os escravos não participavam da captura; eram alocados exclusivamente para o trabalho nas instalações de beneficiamento. No início do século XIX, Itapocorói contava com uma população de 1.413 pessoas livres e 223 escravizados. Com o declínio das populações de cetáceos, as seis armações de Santa Catarina foram sendo gradualmente desativadas. Para saber mais sobre isso vale a pena realizar a leitura dos textos: As populações de origem africana nas armações baleeiras catarinenses, Pesca da Baleia na Colônia, também o texto Corte e uso das madeiras de lei durante o período da pesca de baleias no litoral de Santa Catarina, assim como o estudo dos colegas de Assis, A pesca da baleia no Brasil: um estudo de história e meio ambiente.


Imagens da caça de baleias em Imbituba foram registradas na década de 1950. Fonte

A extração de madeira para as diversas finalidades foi fundamental para o desenvolvimento da colonização da foz e costa ao redor, e a prosperidade de diversos municípios que temos hoje em nosso litoral. Mas desde o início da colonização a exploração não ficava apenas no litoral, foram feitas excursões em busca de madeiras adentro da floresta adentrava o Vale do Itajaí, onde a mata densa oferecia diversidade e abundância de recursos. Isso desencadeou a abertura de picadas e pequenos portos fluviais para escoar toras, ampliando o impacto ambiental na região. Como aponta José Ferreira da Silva, já haviam além dos indígenas, moradores brasileiros dispersos pela região. Em alguns estudos que realizamos no GPHAVI, na região de Botuverá, encontramos fontes que provam que no século XVIII, expedições de corte de madeira eram realizadas até a região que hoje é o centro do município, e as toras exploradas no local eram organizadas em balsas que desciam o rio Itajaí-Mirim até o litoral. Algumas dessas informações podem ser encontradas nas obras de José Ferreira da Silva, em História de Blumenau e em nossas publicações. A exploração florestal e a caça de baleias tiveram um papel importante propulsor do desenvolvimento e da História, e ao mesmo tempo deve ter causado gradativo aumento de impacto as relações ecológicas. Não há como mensurar o impacto, inicialmente pontual, frende a abundante biodiversidade de mata atlântica, e depois, com mais agressividade concomitantemente aos avanços sociais e tecnológicos da região e a demanda por recursos no meio. Temática interessante para estudos com História Ambiental.

Ainda no trecho analisado, Zedar Perfeito Silva relata que a pesca marinha ocorria em diversos pontos, como as praias de Cabeçudas, Piçarras, Armação de Itapocorói e no mar aberto. Eram usados diferentes tipos de apetrechos, cada um específico para uma espécie ou tipo de pesca, como a rede de fundear (malhão), destinada a peixes maiores como cações. A rede de arrasto, de alta capacidade, mas com custos elevados devido ao tipo de malha utilizada, era feita com fios de algodão torcido, um material que demandava manutenção constante por ser suscetível à deterioração em ambiente marinho. Esse algodão era geralmente proveniente de outras regiões, como o Maranhão, e as próprias comunidades pesqueiras produziam as redes manualmente, empregando técnicas de fiar e trançar aprendidas ao longo das gerações. A rede de tainha era utilizada durante o período migratório desse peixe, e assim como as demais, exigia cuidado especial na confecção. Com o tempo, as redes precisavam ser remendadas para garantir a eficiência na captura e, para isso, os pescadores usavam agulhas de madeira esculpidas localmente, aproveitando resíduos de madeira de árvores nativas, como guapuruvu e canela. Já a puçá, um tipo de rede menor para camarões, seguia o mesmo princípio, mas com malhas mais finas e leves, adequadas à captura de espécies pequenas e delicadas. O espinhel e o caniço, usados para capturar peixes menores como cocoroca e badejo, eram feitos com linhas de algodão trançado e anzóis de metal, mas antes do uso extensivo de metais industrializados, os pescadores improvisavam com ossos, espinhos de peixes maiores e bambu para construir varas e suportes. Em muitos casos, a pesca noturna exigia o uso de boias e lanternas feitas de cortiça e velas de sebo, evidenciando a utilização de recursos naturais acessíveis e de baixo custo. As fibras vegetais desempenhavam um papel essencial nessa atividade, não apenas para a produção de redes, mas também para as cordas e amarras, feitas com cipós ou com fibras de bananeira e taquara, abundantes na região. Essas amarras naturais, embora menos resistentes que os materiais sintéticos introduzidos nas décadas seguintes, eram renováveis e biodegradáveis, causando menos impacto ambiental.

Segundo Zedar Perfeito Silva, a pesca era essencial para a sobrevivência das famílias, e já acontecia no mar a competição com embarcações de Santos e Rio de Janeiro, que prejudicava os pescadores locais. Como alternativa, alguns se deslocam para outras regiões, como o Rio Grande do Sul, para trabalhar como assalariados. Além do pescado, a captura e venda de camarão auxiliava o pescador atenuado suas dificuldades econômicas, especialmente porque da atividade, havia uma salga que prepara o produto para exportação a partir do porto de Itajaí. A atividade da pesca que era considerada artesanal estava limitada pela falta de embarcações mais modernas, e das dificuldades do pequeno pescador adquirir equipamentos para pesca oceânica. Muitos pescadores, como João Aniceto da Costa, que foi entrevistado por Zedar, presente no trecho analisado, era líder local com 55 anos e dez filhos, manifestava interesse em obter barcos de pesca oceânica, e alegava uma necessidade devido  a amplitude do mercado para pescado em toda a região. 

Zedar Perfeito Silva aponta que naquela época, a preparação do pescado envolvia toda a comunidade. Isso se apresenta diferente hoje, por exemplo, em um estudo que realizamos com pescadores artesanais no Cana do Linguado, na Baia da Babitonga, os relatos confirmam que as gerações atuais, filho e netso de pescadores abandonaram as atividades da pesca se dedicando a outros ramos profissionais, para ver este estudo clique aqui.  Depois da captura, as famílias limpam e salgavam o peixe, tarefa que, no passado, era feita por escravos e hoje é realizada pelos próprios pescadores e seus parentes. Peixes escalados são pendurados em varais no terreiro, sendo secos ao ar livre. Parte do pescado é vendida nas redondezas e o excedente é destinado à salga. 

Zedar também aborda a pesca de água doce, de rios. Segundo o autor nos rios, a pesca era realizada desde por pescadores profissionais como amadores, e em grande parte para subsistência. Ele descreve que essa pesca tinha como principais espécies a tainha e bagre, que sobem os rios para desovar. Isso acontecia até 1950-70 ainda na altura de Blumenau. Nos meus estudos identifiquei que as principais espécies de água doce pescadas foram a traíra, piava, e o jundiá. Além disso, a introdução de espécies como a carpa, e tilápia entre outras trouxe novos desafios aos processos ecológicos, pois algumas escaparam dos viveiros e se adaptaram aos ecossistemas locais, competindo com as espécies endêmicas e nativas o que possivelmente modificações o ambiente aquático. Esse tema também um muito importante para ser realizado pela História Ambiental.

Fizemos aqui uma breve análise sobre a pesca, principalmente no litoral do Vale do Itajaí. O trabalho de Zedar Perfeito Silva é um importante documento. Escrito na década de 1950, ele reúne várias temáticas e descreve o Vale como um território rural em processo de urbanização. Os dados são riquíssimos para estudos de História Ambiental. Assim como neste trecho, estaremos analisando outros e produzindo novas reflexões nessa área. As fontes utilizadas estão indicadas, e para melhor organização utilizamos o Google Acadêmico para pesquisas específicas, além do ChatGPT para revisão e correção do texto. Se gostou, compartilhe, inscreva-se no blog e acompanhe nossas atualizações nas redes sociais!

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