Você sabia que grande parte da realidade ecológica do Parque Estadual dos Três Picos (PETP), no Rio de Janeiro, possui uma profunda herança cultural negra?
Um estudo recente, História ambiental das populações africanas no Parque Estadual dos Três Picos, Rio de Janeiro, de Wallace Marcelino da Silva, Carlos José Saldanha Machado e Rodrigo Machado Vilani, revela como a influência dos povos africanos escravizados moldou as paisagens da Mata Atlântica fluminense, desafiando a visão eurocêntrica da nossa história ambiental.
O estudo inicia apresentando a História Ambiental como um campo de estudo que surgiu na década de 70, buscando entender a relação constante entre as sociedades humanas e o mundo biofísico ao longo do tempo e do espaço. Essa área reconhece a natureza como um agente histórico fundamental, e não apenas um cenário passivo. No entanto, mesmo no Brasil, um país de maioria negra, ainda há poucos pesquisadores negros atuando nesse campo. Este estudo, portanto, é uma contribuição vital para preencher essa lacuna e reafirmar a importância das populações negras na preservação do bioma Mata Atlântica. O Parque Estadual dos Três Picos - PETP, é a maior unidade de conservação de proteção integral no estado do Rio de Janeiro, abrangendo cerca de 65.000 hectares em cinco municípios: Cachoeiras de Macacu, Guapimirim, Teresópolis, Nova Friburgo e Silva Jardim. Além de ser um centro de rica diversidade ecológica, cultural e geodiversidade, com espécies ameaçadas e endêmicas, suas nascentes e florestas são cruciais para a população da região.
A pesquisa, de abordagem qualitativa, buscou descrever e analisar a influência africana no PETP. Utilizando levantamentos bibliográficos e documentais, ela investigou como a paisagem do parque foi moldada desde os tempos dos "Sertões de Macacu" (século XVIII) e qual a importância dessa realidade biocultural negra para o PETP hoje. O Brasil recebeu o maior contingente de africanos para fins de escravização nas Américas. Esses povos, ao chegarem em terras desconhecidas, interagiram e modificaram as paisagens, deixando um legado duradouro.
O estudo destaca diversas formas dessa influência:
• Os africanos trouxeram consigo plantas que hoje fazem parte da nossa paisagem e cultura alimentar. Podemos citar o café, o quiabo, o inhame, a mamona e diversas espécies de gramíneas. Essas gramíneas, por exemplo, adaptaram-se e hoje dominam vastas áreas de pastagens no PETP, muitas vezes conferindo um aspecto semelhante às savanas africanas. Outras árvores emblemáticas como o baobá e o flamboyant também vieram com eles, interligadas às conexões culturais e religiosas como o candomblé.
• Além das plantas, vieram métodos de cozimento, técnicas de mineração e ferraria, e um vasto conhecimento tradicional. Essas trocas, chamadas de intercâmbios bioculturais, foram fundamentais para a história alimentar do Brasil.
• As paisagens foram africanizadas pelas práticas agrícolas e pela presença dessas plantas, integrando-se à biota nativa. Isso é visível até hoje em quintais de pequenos camponeses e terreiros de religiões de matriz africana, que abrigam uma rica diversidade de plantas nativas e africanas.
• Diante da escravização, os africanos resistiram através da formação de quilombos e mocambos nas florestas da região. Nestes locais, eles mantinham seus modos de vida, com caça, pesca e cultivo de plantas conhecidas de suas terras de origem, formando pequenos comércios à margem da economia colonial. As áreas de difícil acesso do parque, como Macaé de Cima, ainda guardam vestígios desses antigos refúgios negros.
• O estudo adota a perspectiva do Capitaloceno, que questiona a ideia de uma "Era do Homem" (Antropoceno) e aponta a construção do capitalismo e as atividades econômicas coloniais como as verdadeiras causas das crises ecológicas e da exploração de povos e da natureza. Os africanos e a natureza foram "ferramentas" da expansão do capital global, em processos que resultaram em "holocaustos coloniais".
https://www.scielo.br/j/asoc/a/YGhPNzy67BLKGWRFJMGgm9j/?format=pdf&lang=pt |
Apesar da devastação imposta pela escravização e pelas monoculturas de cana-de-açúcar e café, que exigiram uma enorme quantidade de mão-de-obra escravizada e desmatamento, a floresta renasceu em muitas áreas, especialmente nas partes mais altas do parque. Hoje, a influência africana no PETP se manifesta não só na floresta e em suas espécies, mas também nas expressões culturais e nos modos de vida das comunidades locais, muitos deles descendentes diretos dos escravizados. Esses territórios negros evidenciam a sobrevivência e a resistência cultural afrodiaspórica que desafiou e sobreviveu ao sistema colonial. No entanto, essas paisagens valiosas e as populações camponesas, muitas delas de origem negra, enfrentam novas ameaças: o avanço de condomínios de luxo, empresas de água mineral, atividades industriais e o turismo desordenado, que colocam em risco tanto a Mata Atlântica quanto sua rica herança cultural.
Este estudo é uma importante ferramenta para que as visões afrodiaspóricas da História Ambiental reafirmem a relevância das populações negras na preservação da Mata Atlântica. É um convite para olharmos a natureza ao nosso redor com outros olhos, reconhecendo as histórias e culturas que a moldaram.
Referências do estudo: DA SILVA, Wallace Marcelino; MACHADO, Carlos José Saldanha; VILANI, Rodrigo Machado. História ambiental das populações africanas no Parque Estadual dos Três Picos, Rio de Janeiro. Ambiente e Sociedade. Vol. 28, 2025.
Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/asoc/a/YGhPNzy67BLKGWRFJMGgm9j/?format=pdf&lang=pt>.
Acesso em 27/07/2025.