"Eu sou o que me cerca. Se eu não preservar o que me cerca, eu não me preservo".
José Ortega y Gasset

domingo, 20 de julho de 2025

Clima e imigração no Vale do Itajaí no século XIX

Imagem gerada com IA
Você já parou para pensar nos desafios enfrentados por aqueles que buscam uma nova vida em terras distantes? No século XIX, milhares de imigrantes europeus, principalmente alemães e italianos, embarcaram em uma jornada rumo ao sul do Brasil, especificamente o Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Longe de ser um caminho fácil, a adaptação a um ambiente com características abióticas e bióticas totalmente diferentes de sua terra natal se tornou um dos principais obstáculos.

Vamos explorar aqui o artigo “A influência do clima nos imigrantes europeus do Vale do Itajaí-SC (século XIX)”, de autoria de Gilberto Friedenreich dos Santos, Suzana Beatriz Petters, Juliano João Nazário e Martin Stabel Garrote, publicado na revista científica Ars Historica da UFRJ. A pesquisa se insere nas chamadas Humanidades Ambientais e procura compreender como o clima impactou a vida dos colonos alemães e italianos que se estabeleceram no Vale do Itajaí no século XIX. Com base em cartas de imigrantes, relatórios de administração colonial e relatos de viajantes, os autores analisam o processo de aclimatação dos europeus a um ambiente muito diferente de suas terras de origem.

Inicialmente, o clima representava uma das maiores dificuldades para o estabelecimento e a adaptação dos colonos europeus no Vale do Itajaí. Relatos de viajantes, de Dr. Hermann Blumenau (o empreendedor da colonização da região) e dos próprios imigrantes documentam esse processo de aclimatação. Um exemplo marcante é a experiência de Baumgarten, um imigrante alemão que chegou em junho de 1853. Em uma carta de outubro do mesmo ano, ele descreve as severas dificuldades para trabalhar na roça devido à aclimatação, mencionando pés inchados, o corpo coberto por abscessos, dores de cabeça e fraqueza. Ele estava impossibilitado de fazer qualquer trabalho.

No entanto, a narrativa sobre o clima começou a mudar. Dr. Blumenau, antes de fundar a colônia, já considerava a salubridade do clima como um fator crucial para a escolha do território, atribuindo a ela poucos casos de doenças. Em seus relatórios, ele afirmava que os problemas de aclimatação (como pés inchados e erupções de pele) desapareciam rapidamente com uma dieta e estilo de vida adequados, e que o clima à beira do Itajaí era "excepcional e, sem dúvida, muito saudável para a constituição física alemã".

Curiosamente, o mesmo Baumgarten que enfrentou grandes dificuldades, menos de um ano depois, em abril de 1854, já descrevia o clima da colônia como "ameno e saudável". Ele relatou que "De março a outubro é uma contínua primavera e os meses de verão são mais quentes que na Alemanha, é verdade, mas bem suportáveis e o calor é abrandado pelos ventos que regularmente sopram do mar e de terra e que tornam as noites frescas e agradáveis".

Esse discurso de um clima "ameno e saudável" prevaleceu nas fontes e foi usado como propaganda para atrair novos imigrantes, associado a fatores de saúde e progresso. Folhetos com mapas e textos explicativos eram distribuídos na Alemanha, exaltando o clima salubre e agradável do Vale do Itajaí. Mesmo com os europeus na Alemanha associando o clima tropical a problemas, cartas como as dos irmãos Weise afirmavam que o calor "não representava problema", pois as pessoas se acostumavam rapidamente. Os irmãos Kirschner, que chegaram em 1854, também não manifestaram problemas de aclimatação, contestando o "exagero atribuído pelos europeus em relação ao calor e às doenças".
Adaptação de Hábitos e Desafios Contínuos

O clima não influenciou apenas a saúde, mas também condicionou mudanças nos hábitos dos colonos, especialmente os alimentares. A dificuldade de cultivar cereais como o trigo no clima quente levou à substituição do pão de trigo por pão de milho. A dieta passou a incluir carne-seca, bolinhos, pirão de farinha de mandioca e feijão preto, no lugar da manteiga e cerveja da Alemanha.

A adaptação também se estendeu às técnicas de cultivo. Em 1866, a agremiação "Culturverein der Colonie Blumenau" discutiu estratégias para enfrentar o intenso frio, propondo a importação de sementes de grama e capim mais resistentes às geadas dos Estados de La Plata.

Apesar do tom geralmente positivo, o clima também trouxe desafios. Dr. Blumenau, em 1855, relatou um verão excepcionalmente quente que causou várias doenças. Em 1856, ele citou casos graves e até fatais de febres reumáticas, gástricas e nervosas, que afetaram tanto os habitantes locais quanto os recém-chegados e aclimatados, associando-as ao tempo seco e calor intenso. Christian Müller, um zoólogo que viveu em Blumenau nos anos 1880, descreveu noites verdadeiramente frias no inverno e, meses depois, um verão com sol "queimando quase verticalmente", tornando a hora do almoço insuportável. Ele notou como o clima influenciava a rotina diária. Além disso, enchentes foram extensivamente relatadas nos documentos do Dr. Blumenau, mostrando que os eventos associados ao clima nem sempre foram benéficos.

No final do século XIX e início do século XX, relatos de viajantes notaram mudanças físicas na aparência dos colonos, como o reconhecimento por Lacmann, em 1903, de uma "metamorfose". A cor da face dos nascidos na colônia tinha uma leve tonalidade amarela, e a estatura era um pouco menor que a do agricultor alemão, embora sem representar uma "degeneração da raça". Esse tipo de discurso reflete claramente as influências do pensamento evolucionista e do determinismo ambiental, comuns à época, marcados por categorias raciais e por uma visão hierarquizada das populações humanas.

Ao investigar essas representações do clima, o artigo contribui para uma História Ambiental crítica, mostrando como discursos sobre a natureza foram usados para moldar políticas migratórias e justificar ocupações territoriais. Além disso, ajuda a compreender os impactos das mudanças ambientais na construção das identidades culturais e sociais da região. Estes documentos históricos, incluindo cartas pessoais e relatórios oficiais, são fontes valiosas para compreender as relações passadas e presentes entre a sociedade e a natureza. Ao analisá-los, percebemos as inter-relações da interação humana com o meio ambiente e como as percepções e adaptações ao clima foram cruciais para o desenvolvimento local. A experiência dos imigrantes europeus no Vale do Itajaí no século XIX foi marcada por uma profunda interação com o clima. De um obstáculo inicial para a aclimatação a um elemento fundamental na propaganda e no desenvolvimento da colônia, o clima moldou hábitos, influenciou a saúde e deixou uma marca indelével na história dessa população.

Este trabalho ajuda a perceber que a História do clima é também uma história de adaptações culturais e estratégias políticas. Ao olhar para o passado sob a lente da História Ambiental, compreendemos melhor os desafios contemporâneos das mudanças climáticas, dos deslocamentos humanos e da sustentabilidade.

📖 Você pode acessar o artigo completo aqui:
👉 Leia o artigo na Revista Ars Historica

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