Nesta postagem vamos analisar o texto de introdução do livro A Living Past Environmental Histories of Modern Latin America, cujo título original é Finding the “Latin American” in Latin American Environmental History de John Soluri, Claudia Leal, e José Augusto Pádua.
Compreender a América Latina exige ir além dos clichês de paisagens exuberantes e repúblicas instáveis e uma das ferramentas mais poderosas para essa compreensão aprofundada é a história ambiental, um campo que examina a intrínseca e complexa relação entre as sociedades humanas e a natureza ao longo do tempo. Para entender a pertinência dessa abordagem, basta olhar para Villa Inflamable, um bairro pobre de Buenos Aires situado às margens do poluído rio Matanza-Riachuelo.
| https://elpais.com/internacional/2018/02/14/argentina/1518638112_243046.html |
Ali, a degradação socioambiental não é um problema recente, mas a sobreposição de múltiplas camadas de história. Desde o século XIX, a área abrigava matadouros e curtumes que despejavam seus resíduos no rio. No século XX, tornou-se sede de um dos maiores polos petroquímicos da Argentina. Políticas neoliberais mais recentes agravaram a pobreza, expondo ainda mais os moradores a contaminantes como chumbo e cromo. A história de Villa Inflamable — que culminou em uma ação na Suprema Corte — encapsula a interação entre legados coloniais, projetos de nação, conexões globais e desigualdade social, mostrando por que uma perspectiva histórica é indispensável.
É nesse contexto que o capítulo "Introduction. Finding the ‘Latin American’ in Latin American Environmental History", parte da obra A Living Past: Environmental Histories of Modern Latin America, se apresenta como uma leitura fundamental. Os autores lançam uma questão central que serve como fio condutor para toda a análise: o que define e torna única a história ambiental da América Latina? Procuraremos com este texto explorar a estrutura argumentativa e as respostas propostas por este importante texto. Para baixar o texto que inspira esta publicação, acesse aqui.
A história ambiental latino-americana é um campo de estudo vibrante, mas relativamente jovem. Embora já bem estabelecida nos Estados Unidos e na Europa, foi apenas no início do século XXI que a área começou a florescer na América Latina, com um aumento significativo de publicações, conferências e programas de pós-graduação. Um marco institucional decisivo foi a criação da Sociedade Latino-Americana e Caribenha de História Ambiental (SOLCHA) em 2006, que ajudou a fortalecer redes de pesquisa e a promover o diálogo entre especialistas.
No entanto, o capítulo aponta desafios persistentes. A pesquisa ainda é marcada pela fragmentação, e a circulação de conhecimento enfrenta barreiras geográficas, linguísticas, tecnológicas e de culturas acadêmicas que resultam em uma historiografia desigual. Muitos estudos se concentram em nações ou regiões específicas, tornando difícil a construção de uma visão geral. É precisamente para superar essa fragmentação que o capítulo se propõe a oferecer uma estrutura analítica unificadora, capaz de conectar estudos de caso locais a processos históricos mais amplos.
O principal argumento do capítulo é a identificação de quatro características inter-relacionadas que são cruciais para "encontrar o 'latino-americano'" na história ambiental da região. Esses quatro eixos, que se sobrepõem e se influenciam mutuamente, oferecem uma lente poderosa para interpretar as transformações socioambientais da América Latina moderna:
1. As duradouras heranças do colonialismo ibérico.
2. A formação e persistência dos Estados-nação.
3. As trocas transoceânicas.
4. A tropicalidade.
O primeiro eixo desconstrói as heranças coloniais, argumentando que o colonialismo ibérico transformou permanentemente os ecossistemas e as sociedades da região. O colapso demográfico das populações indígenas, causado pela introdução de patógenos europeus, foi uma das mudanças mais drásticas. A exploração intensiva de recursos, como o desmatamento para alimentar as fundições de prata em Potosí e na Nova Espanha, deixou cicatrizes duradouras. O colonialismo também deu origem a grandes centros urbanos, como a Cidade do México, construídos sobre ecossistemas frágeis como leitos de lagos. A introdução de gado, cavalos e porcos ibéricos alterou paisagens e modos de vida, enquanto em outras áreas, o declínio populacional indígena levou ao abandono de campos agrícolas, permitindo a expansão de florestas. Os autores ressaltam uma nuance crucial: diferentemente de projetos coloniais europeus posteriores na África e na Ásia, que tinham políticas explícitas de gestão de recursos, o colapso demográfico nas Américas foi uma consequência não intencional, destacando a contingência única do passado colonial da região.
Após as independências no século XIX, os novos Estados-nação se apropriaram da natureza, tratando-a como um "patrimônio nacional". Este segundo eixo analisa o papel central e dual do Estado na reconfiguração do meio ambiente. Os governos se esforçaram para mapear e delimitar seus territórios, nacionalizando a natureza através da demarcação de fronteiras. Formaram-se o que os autores argumentam serem, literalmente, "repúblicas da natureza" — nações cujo poder estatal e finanças foram construídos sobre a extração e exportação de commodities como o guano peruano (excremento de aves), bananas e café. No século XX, projetos de modernização impulsionados pelo Estado — grandes barragens, rodovias, industrialização — aceleraram essa transformação extrativa. Este eixo expõe uma tensão fundamental: o mesmo Estado que promovia a exploração agressiva para a construção nacional era também o agente que criava parques nacionais e departamentos florestais, assumindo um papel na conservação para definir e proteger o patrimônio da nação.
A história ambiental da América Latina é inseparável de fluxos globais que se estendem muito além do "Intercâmbio Colombiano" inicial. O terceiro eixo aprofunda essa análise, desafiando uma visão eurocêntrica e do início da era moderna ao destacar conexões transoceânicas posteriores e multidirecionais. Houve fluxos massivos de pessoas, incluindo africanos escravizados, trabalhadores contratados da China e da Índia, e imigrantes da Europa. Esses grupos trouxeram consigo suas próprias plantas, animais e práticas culturais. Os fluxos de biota também foram determinantes; a introdução de gramíneas africanas e gado do sul da Ásia, por exemplo, revolucionou a pecuária tropical. Além disso, os fluxos de doenças de commodities, que ameaçavam culturas de exportação, levaram cientistas e governos a criar centros de pesquisa dedicados à patologia vegetal e ao melhoramento genético, conectando a ciência local às redes globais de conhecimento.
O quarto eixo, a "tropicalidade", é um conceito complexo que não se refere apenas a uma característica climática, mas a uma poderosa ideologia cultural construída historicamente. Os autores mostram como essa ideia sempre foi ambivalente: os trópicos eram vistos tanto como um lugar de exuberância e riqueza natural quanto de perigo, doença e degeneração racial. Essa ideologia dualista serviu para justificar intervenções externas, como as campanhas de saneamento que viabilizaram a construção do Canal do Panamá. A percepção sobre as florestas tropicais também mudou drasticamente. Até meados do século XX, elas eram vistas como "selvas" (jungles) ameaçadoras, um obstáculo à civilização. A partir da década de 1970, essa imagem foi substituída pela de "florestas tropicais" (rainforests), ecossistemas frágeis e megadiversos, agora ameaçados pela civilização.
Ao analisar o estado da arte da pesquisa, os autores observam que a "primeira onda" de estudos em história ambiental latino-americana teve uma forte preocupação com o destino das florestas e o desmatamento. Embora fundamental, esse foco deixou outros temas cruciais sub-representados na historiografia. Áreas como a mineração e o petróleo, as pastagens (pampas, cerrados, llanos), os desertos e, de forma mais ampla, o consumo interno de alimentos e energia, ainda carecem de mais atenção. A aplicação dos quatro eixos a essas lacunas pode gerar novas e importantes percepções. Um estudo sobre o Deserto do Atacama, por exemplo, poderia iluminar o papel do Estado-nação (Eixo 2) na gestão de recursos hídricos escassos e as complexas ideias culturais sobre terras áridas que desafiam a narrativa dominante da "tropicalidade" (Eixo 4).
A força da contribuição do capítulo introdutório de A Living Past reside em sua capacidade de oferecer um "mapa conceitual" e uma proposta metodológica para um campo acadêmico em expansão, mas ainda fragmentado. Ao articular os quatro eixos — heranças coloniais, Estado-nação, conexões transoceânicas e tropicalidade —, os autores fornecem uma estrutura robusta para pensar a história ambiental da região de forma integrada e comparativa.
A importância deste texto pode ser destacada para diferentes públicos:
• Para estudantes: Funciona como uma excelente porta de entrada, apresentando de forma clara e sistemática os principais conceitos, debates e temas da área.
• Para professores: Oferece uma estrutura didática e organizada para lecionar sobre a história ambiental da América Latina, permitindo conectar diferentes períodos e regiões.
• Para pesquisadores: Serve como uma provocação para novas investigações, incentivando a conexão entre estudos de caso locais e os grandes processos históricos que definem a região, além de apontar lacunas importantes na pesquisa.
Em suma, o capítulo demonstra de forma contundente como a história ambiental é uma ferramenta indispensável para uma compreensão profunda dos desafios contemporâneos e das formações sociais, políticas e econômicas da América Latina moderna.
Sobre os autores do texto:
John Soluri é professor de História e Diretor de Global Studies no Departamento de História da Carnegie Mellon University (EUA), onde leciona sobre mudanças sociais e ambientais na América Latina. Sua pesquisa e ensino exploram, especialmente, as histórias transnacionais da agricultura, alimentação, energia e da mercantilização de não-humanos na região. É autor de Banana Cultures: Agriculture, Consumption and Environmental Change in Honduras and the United States, obra premiada com o George Perkins Marsh Award. Seus projetos recentes envolvem história ambiental da alimentação, produção de café e extração de petróleo na América Latina.
Claudia Leal é professora titular no Departamento de História e Geografia da Universidad de los Andes (Bogotá, Colômbia). É doutora em Geografia pela University of California, Berkeley, com formação em economia. Sua pesquisa se situa na interseção entre história e geografia, com foco na história ambiental latino-americana, conservação da natureza e transformação do território após a escravidão. Publicou livros como Paisajes de libertad e coeditou coletâneas importantes, incluindo Un pasado vivo: Dos siglos de historia ambiental latinoamericana, versão em espanhol de A Living Past. Leal também participou como fundadora e co-presidente da Sociedade Latino-Americana e Caribeña de Historia Ambiental e foi pesquisadora em instituições internacionais.
José Augusto Pádua é professor associado de História do Brasil no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com doutorado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e pós-doutorado pela University of Oxford. É um dos principais especialistas brasileiros em história ambiental, tendo contribuído com estudos sobre políticas ambientais, biomas brasileiros e história territorial. Foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade (ANPPAS) e atua no Laboratório de História e Natureza da UFRJ. Sua obra inclui Um sopro de destruição, que examina as bases ambientais e políticas do Brasil escravista, e a coorganização de A Living Past: Environmental Histories of Modern Latin America. Pádua também participa de conselhos editoriais e colabora internacionalmente em conferências e projetos de pesquisa
Referência: SOLURI, John; LEAL, Claudia; PÁDUA, José Augusto. Introduction. Finding the “Latin American” in Latin American Environmental History. In: LEAL, Claudia; SOLURI, John; PÁDUA, José Augusto (org.). A Living Past: Environmental Histories of Modern Latin America. New York: Berghahn Books, 2018.
OBS: Este texto passou por revisão e alterações a partir de uso de ferramenta de IA generativa.
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